v.1, n.1, p. 65-77, set.-dez. 2017 | ISSN 2594-6463 |
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 1, n. 1, p. 65-77, set.-dez. 2017 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463.2017.v1.n1.p65-77
Formação humana e educação no contexto de mundialização
do conhecimento: sentidos
Human formation and education in the context of knowledge globalization: meanings
Formación humana y educación en el contexto de la mundialización del conocimiento: sentidos
VITÓRIA HELENA CUNHA ESPÓSITO
1
; MARTHA ABRAÃO SAAD LUCCHESI
2
;
GILBERTO TADEU REIS DA SILVA
3
; MARISTELA ROSS DE CASTRO GASONATO
4
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO, PUC-SP, SÃO PAULO-SP, BRASIL
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, USP, SÃO PAULO-SP, BRASIL
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA, UFBA, SALVADOR-BA, BRASIL
RESUMO
Este trabalho resgata o sentido original do termo formação e interroga, na educação, o papel do
conhecimento no atual contexto de mundialização. Corrobora os estudos que têm, contemporaneamente,
denunciado o deslocamento do sentido local, comunal do conhecimento para um contexto de
mundialização, comumente chamado por “cidade educativa”. Estas investigações de natureza
hermenêutica fenomenológica revelam, a partir das descrições dos sujeitos investigados que, ao
desconsiderar as idiossincrasias, as experiências que dizem da diversidade cultural, tanto regional como
multicultural de seus atores, estes passam a privilegiar saberes tradicionalmente validados, terminando
por expropriar do conhecimento humano seus aspectos fundantes geradores de compreensões. Situados
num contexto de mundo em transformação, os homens se educam (e-ducere) e são educados (e-ducare),
e, neste movimento sempre inacabado, produzem cultura... formam-se.
Palavras-chave: Pesquisa em Educação. Formação Humana. Mundialização do Conhecimento.
ABSTRACT
This study brings back the original sense of the word formation, and questions the role of knowledge in
education in the present context of globalization. It corroborates the contemporaneous studies that have
exposed the displacement of the local, communal sense of knowledge to a context of globalization, also
known by “educative city”. These investigations of hermeneutical and phenomenological nature reveal,
based on descriptions of the investigated subjects that, by disregarding the idiosyncrasies, the experience
that tell of their cultural diversity, both regional and multicultural, they favour the traditionally validated
knowledge, and end up by expropriating from human knowledge its basic aspects that generate
comprehension. Situated in a context of world in transformation, men educate themselves (e-ducere) and
are also educated (e-ducare), and, in this eternally unfinished movement, they make culture... forming
themselves.
Keywords: Research in Education. Human Formation. Knowledge Globalization.
RESUMEN
Este trabajo rescata el sentido original del rmino formacn e interroga en la educación el papel del
conocimiento en el actual contexto de mundialización. Corrobora los estudios que, al mismo tiempo,
denuncian el desplazamiento del sentido local, comunal del conocimiento hacia un contexto de
mundialización, comúnmente llamado ciudad educativa. Estas investigaciones de naturaleza
hermenéutica fenomenológica revelan, a partir de las descripciones de los sujetos investigados que, al
desconsiderar las idiosincrasias, las experiencias que dicen de la diversidad cultural, tanto regional como
multicultural de sus actores, estos pasan a privilegiar saberes tradicionalmente validados, terminando por
expropiar del conocimiento humano sus aspectos fundantes generadores de entendimientos. En un
contexto de mundo en transformación, los hombres se educan (e-ducere) y son educados (e-ducare), y, en
este movimiento siempre inacabado, producen cultura... se forman.
Palabras clave: Investigación en Educación. Formación Humana. Mundialización del Conocimiento.
1
Professora Titular da Faculdade de Educação da PUC-SP. E-mail: vitoriaesposito@hotmail.com
2
Pesquisadoranior do Núcleo de Políticas Públicas (NUPPs) da USP. E-mail:
mgrlucchesi@uol.com.br
3
Professor Titular da UFBA. E-mail: gilberto.tadeu@ufba.br
4
Membro do Grupo de Pesquisa Educação e Produção de Conhecimento da PUC-SP. E-mail:
maristelagasonato@gmail.com
66
Vitória H. C. Espósito; Martha A. S. Lucchesi; Gilberto T. R. da Silva; Maristela R. de C. Gasonato
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INTRODUÇÃO
O contexto mundial nos coloca face a face com situações inesperadas, de
diferentes naturezas e nos faz vivenciar pela falta, a necessidade de algo que parece ter
se perdido no tempo e no espaço, algo da condição humana originária, que se mostra
irredutível a outras causalidades ou explicações que estejam além do próprio femeno.
Esta situação produz marcas que perpassam nossos corpos determinando modos de ver
e apreender as coisas e na forma como ao projetar caminhos focalizamos alguns,
obscurecendo outros, fazendo com que se percam as diferenças que nascem do entre
si”, berço da profundidade que a velocidade esgota e suprime reduzindo o ser humano a
ter da realidade um espectro, pois a linearidade estática que prevalece estabelece modos
de apreender as coisas que estão na regularidade, determinando efeitos, predizendo,
controlando. Essa apreensão leva à hegemonia de um tempo mecanicista, seja pelas
marcas que se refletem no currículo escolar, seja pela predominância de uma ordenação
disciplinar da episteme
5
que se utiliza de uma metodologia pouco preocupada com
outras organizações do pensar. Conforma-se assim, desde cedo, o modo de nos
dirigirmos às coisas sem nenhum ou quase nenhum questionamento. Basta dizer que
fomos alfabetizados sob a égide de métodos fonéticos, silábicos ou globais sem
saber que estruturas de pensamento foram assim se formando em detrimento de quê.
Mais ainda, o termo “conhecimentoé utilizado em nosso cotidiano sem que nos
preocupemos em investigar os diferentes sentidos que na Hisria foram sendo forjados
para esta palavra. Dela nos servimos como se fosse reconhecida por todos, usada sem
que qualquer sombra de vida pudesse vir a pairar sobre sua constituição. Entretanto,
sua origem grega, e mesmo latina (co+gnoscere), fala de nascimento, refere-se a um ato
intencional, num sentido genético, significando nascimento tal como na palavra francesa
conaissance. Tomado na sua origem sânscrita (jñana), conhecimento significa
captação conjunta” e “com-preensão” (ESPÓSITO, 2006).
Conhecimento, nessa perspectiva, representa o fundamento da vida mental e
consciente. É seu significado central, para além de outros sentidos, que adquiriu ao
longo da história, quando oscila entre o sentido forte do termo “conhecimentocomo
compreensão, participação ou realização e o de mera reprodução de conteúdos,
conformadora de condutas. Contém em si, pois, no primeiro caso como participação
o germe da construção de conhecimentos genuínos, prático-poiéticos, criadores.
Como participação, torna-se possível ver o caráter de construção que desta palavra
emana, quando o ser enraizado na sua existência pela mediação do corpo vê-se situado
no espaço e no tempo, ser histórico, habitando a carne do mundo. Esse modo de
compreender o conhecimento nos leva a retomar Bloom (1977), que observa que o
conhecimento abarca comportamentos e situações objetivas, passíveis de verificão e
explicações, enquanto a compreensão, processo mais sutil, enfatiza a atribuição de
significados, de forma que, ao expressá-los, o sujeito o faz de maneira análoga àquela
que lhe pareça com mais sentido. Nesta empreitada, esse novo sentido pode ir além do
que lhe foi oferecido na própria comunicação, gerando transposições.
Consideramos que esta configuração que se gesta na experiência comunicativa
surge de tensões, resultando de situações vividas significativamente pelo sujeito cujas
5
Por episteme Michel Foucault compreende um a priori histórico que num dado período delimita, na
totalidade da experiência, um campo do saber, definindo o modo de ser dos objetos que aparecem nele,
apresentando modelos teóricos à percepção cotidiana do homem e definindo as condições em que se pode
sustentar um discurso sobre as coisas que são reconhecidas como verdadeiras (MERQUIOR, 1985, p. 50).
67
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explicações dadas são insuficientes para dizer de como o homem apreende o mundo e as
coisas que nele estão.
PERCURSOS METODOLÓGICOS DE PESQUISA: EM BUSCA DE SENTIDOS
Nas perspectivas trabalhadas trazemos aqui um relato de estudos efetuados no
âmbito da Cátedra Joel Martins (ESPÓSITO et al., 2014), que se desenvolvem como um
percurso metodológico e que focam a experiência dos sujeitos que vivenciam a
indissociável interface saúde-educação numa perspectiva inter/multi e transdisciplinar.
Com estes estudos e de forma coerente às suas proposições a Cátedra Joel Martins
6
enfatiza que a consciência pré-reflexiva e p-objetiva presente nos discursos
fenomenológicos mostra-se de forma especial para a compreensão dos modos pelos
quais os sujeitos envolvidos na investigação vivenciam seu fazer, formulam sentidos,
produzem conhecimentos. Nesta intencionalidade a Cátedra, ao produzir e divulgar
estudos e trabalhos tem contribuído para a construção de estruturas de pensamento, de
forma a influenciar, orientar e subsidiar atividades voltadas ao desenvolvimento
humano e à produção de ações educativas, imprescindíveis para o enfrentamento dos
desafios que o mundo contemporâneo nos ime, e assim dar suporte à concretização
das múltiplas relações, especialmente entre educação, saúde, cultura e sociedade
(ESPÓSITO; SILVA, 2012). Como suporte metodológico, a fenomenologia
hermenêutica tem propiciado a leitura compreensivo-interpretativa das pesquisas
apresentadas.
Salientamos a necessidade de se investir em uma postura crítica nas investigações
sistemáticas; no discernimento de que é possível fazer ciência a partir da experiência
vivida e da intervenção na realidade concreta. Concluímos ainda que a construção de
conhecimento, de ações educativas humanizadoras e de cuidados, constitui-se num fazer
transformador em constante (re)construção.
E o que nos trazem ainda estas investigações?
Com relação à formação profissional, Silva (2003), na sua tese doutoral e ao
estudar a formação profissional constata que os alunos, ao dizerem da ação educativa
por eles vivenciada no curso de Graduação de uma instituição de ensino superior da
Grande São Paulo, inicialmente enfatizam uma perspectiva de formação que
apresenta a crença de que todos os questionamentos e dúvidas deverão ser sanados
antes de sua graduação, quando então estariam formados. Expressam assim a sua
percepção de formação como algo que se limita a um período de quatro anos.
Entretanto, emerge também desta pesquisa a referência à temática coexistência,
que traz como sentido mais amplo e próprio da condição humana o ser e estar no
6
A Cátedra Joel Martins foi instituída pela Deliberação PUC-SP de nº 35/2008 de 19/12/2008, publicada
em 05/2009, tendo como sede a Faculdade de Educação da PUC-SP. Tem encontrado seu locus principal
de estudo, pesquisa e diálogo na Sociedade de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana
(ESPÓSITO; SILVA, 2012). Por sua vez, o Prof. Dr. Luiz Gonçalves Junior, atual Coordenador da
Cátedra Joel Martins, nas suas referências à mesma sempre nos lembra de que esta possui membros de
distintas Instituições (PUC-SP; UFSCar; UFBA; UNESP; UNIFESP; entre outras) trabalhando de modo
cooperativo, visando, conforme objetivos específicos três e quatro delineados na proposição da Cátedra:
3. Integrar esforço conjunto entre comunidades e instituições dispostas a estabelecer parcerias,
incentivando a construção de espaços educativos voltados à Educação para todos, especialmente no que
tange à alfabetização linguística e à capacitação essencial para a vida; 4. Programar contatos para o
estabelecimento de parcerias regionais, nacionais e internacionais. Mais ainda, nos diz da tarefa desta
Cátedra quanto à produção de conhecimento e ao desenvolvimento de ações educativas, sempre em prol
da tolerância, da solidariedade e do acolhimento à diversidade, em uma cultura de paz (ESPÓSITO;
SILVA, 2012).
68
Vitória H. C. Espósito; Martha A. S. Lucchesi; Gilberto T. R. da Silva; Maristela R. de C. Gasonato
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mundo, almejando compreender esse modo de ser/estar com o outro. Observamos, de
forma significativa, que ao se manifestar na pesquisa o pesquisador acredita que sua
vida acadêmica o aproxima da atuação profissional e docente, como ser no mundo. No
instante em que isso ocorre, temos como possibilidade apreender o conhecimento
libertador, autêntico, e não apenas a mera reprodução de conhecimento. O docente, ao
acolher o aluno, estará possivelmente expressando uma postura ativa e reconhecida
como própria, democrática. Considera que o aluno deve ser estimulado em sua
capacidade imaginativa, através do estudo ctico de modelos de organização do
pensamento e de percepção da realidade. Desta ótica, é preciso compreender a prática
docente como trabalho humano, construída por sujeitos inseridos em um espaço
hisrico e socialmente localizado, uma dimensão fundamental na vida humana, capaz
de transformar o homem em seu mundo/vida, nos seus aspectos
objetivos/subjetivos/intersubjetivos. Mais ainda, considera que: ensinar e aprender
imbricam-se na existência. Assim sendo, o docente na vivência da sua ação
compreende-se como um ser que é formador/preceptor/educador, um ser
ôntico/ontológico, ser que é corpo e habita a corporeidade do mundo, e que “sendo”, na
concretude da ação educativa, dispõe-se a intervir, transformando.
Ainda em Silva (2003) vemos que na convivência cotidiana com a presea do
professor é que o aluno constrói uma aproximação uma ponte entre mundos. É com
a realidade do mundo exterior, presente em toda sua variedade e diversidade existente
na palavra e ação do professor e no vivido, que ambos reconhecem as dificuldades e
evidenciam-se os passos da autonomia, da liberdade e os sucessos possíveis. Ao
orientar-se pela convivência que se estabelece em sala de aula ou no campo da prática e
na preceptoria, o aluno, enquanto presença, empreende a construção do conhecimento,
sua e do outro como ser-no-mundo.
Mais ainda, nas investigações de natureza interdisciplinar e multiprofissional
relatadas (SILVA et al., 2008), o autor observa que os profissionais de saúde são
frequentemente formados com vies distorcidas das reais necessidades do cotidiano
assistencial, tendo por premissa a visão fragmentada dos processos de construção das
identidades profissionais que privilegiam as corporações, assim acarretando a quase
inexistência de reciprocidade, interação, complementaridade ou cooperação mútua entre
setores e, sobretudo, entre profissionais. Ao nos conscientizarmos da existência de
nichos, espaços vazios, entre as diferentes regiões ontológicas de conhecimento
especializado, um entre-si, estes se mostram, ao não serem percebidos, por um lado
como uma das possíveis causas do distanciamento disciplinar que percebemos existir na
prática inter-multi-profissional, sobretudo quando vislumbramos os poderes paralelos
que são criados culturalmente; por outro lado se percebidos abrem espaço para que
se dê o novo, o inusitado.
Cabe ressaltar que a formação na área de saúde em sua maior parte, se desenvolve
com um quantitativo de formação teórica e prática, todavia distanciada da humanização
nas relações entre os educandos e educadores. Deve-se também destacar que estes
percursos formativos se dão de maneira uniprofissional, sendo que, após tal ão o
exercício profissional se dá em equipe de saúde, ou seja, em equipe multiprofissional.
Dessa maneira, a multiprofissionalidade pode ser um exercício, uma estratégia
visando colocar o ser humano na existência e diminuir os distanciamentos apontados
anteriormente. E mais, diante do estudo trazido por Nunes et al. (1998) é importante
perceber que a multiprofissionalidade é uma tendência global e que sua utilidade na
atuação em saúde tem destaque no trabalho que desenvolva ações de promoção,
prevenção e reabilitação em saúde, o que motiva as ações em equipes colaborativas. Em
face dessa explicitação, é importante refletir sobre a necessidade de currículos
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descompartimentalizados, diminuindo a resistência à colaboração interprofissional. Na
diversidade que marca as conceituações e práticas interdisciplinares, é possível
identificar pontos comuns: o sentido de relação, a valorização da história dos diferentes
sujeitos/disciplinas envolvidas, o movimento de questionamento e dúvida, a busca por
caminhos novos na superação de problemas colocados no cotidiano, a ênfase no
trabalho coletivo e na parceria e o respeito pelas diferenças (UNIFESP, 2006).
O projeto de pesquisa, cujas investigações citamos anteriormente, se desenvolveu
até 2015, junto a um Programa de Mestrado Profissional da Universidade Federal de
São Paulo. Dele resultaram quatro dissertações de mestrado que abordaram perspectivas
diferenciadas da formação profissional e multiprofissional em saúde, tanto em ambiente
de residência multiprofissional quanto da educação em saúde em instituição federal de
ensino superior e na formação de nutricionistas em ambulatório de pacientes submetidos
a cuidados especializados, com a imprescindível participação da equipe
multiprofissional.
Nessa trajetória, o autor retoma a fala de Joel Martins (1992) ao dizer que, numa
perspectiva hermenêutica e fenomenológica, o ensinar e o aprender num currículo como
poíesis consiste na possibilidade que tem o ser humano de tomar consciência da
necessidade de ver-se inserido no mundo humano, um ser com o outro, e então
reorganizar um projeto de vida.
Ainda no âmbito dos estudos da tedra Joel Martins, focando a experiência dos
sujeitos que vivenciam a indissociável interface saúde-educação numa perspectiva
inter/multi/transdisciplinar, trazemos aqui os trabalhos de Gasonato (2008), que
retomam os resultados capturados em pesquisa desenvolvida na modalidade qualitativa
com fundamentação fenomenológica existencial e hermenêutica durante sua graduação
em Pedagogia, avançando com os estudos desenvolvidos contemporaneamente pelo
Grupo de Pesquisa Educação e Produção de Conhecimento (CNPq-PUC-SP). Destes
estudos, trazemos a preocupação em produzir uma reflexão aproximando ensino e
pesquisa, pois acreditamos que pesquisar e educar se identificam em um permanente e
dinâmico movimento.
Corroborando com outro trabalho (ESPÓSITO; GASONATO, 2016), em suas
pesquisas a autora nos traz de forma convergente que assim como a existência num
mundo de cultura é inerente ao ser humano, essa existência traz aspectos culturais e
sociais ao ser em si; ou seja, categorias já dadas, teorias validadas, estabelecem um
óculo perceptual e social que pro-jeta ideologicamente compreensões, interpretações e
explicações. É como se o mundo simbolicamente já contivesse tudo aquilo de que
precisamos, levando-nos a vê-lo através do olhar do outro. Tradicionalmente, a cultura
de dominação privilegia este modo de pensar o mundo, favorecendo sim, a liberdade
para, mas não a liberdade de. Liberdade de se saber ser histórico, de se saber capaz de
interferir conscientemente em seu próprio tempo, um ser que não apenas está no mundo,
mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser
o ente de relações que é (ESPÓSITO et al., 1999). Concluindo, constatamos que
ensinar, aprender, pesquisar palavras que, vistas em “situações educativas”, nos dizem
do homem como um ser fadado a conhecer é dizer da liberdade que se faz
cotidianamente na concretude da existência humana. Conceber este homem na sua
historicidade, como construtor de conhecimento é enredar-se no dilema frente às suas
facticidades, saber-se também um ser de decisões.
RETOMANDO O FLUXO DO PENSAR
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Na continuidade de nossos trabalhos e em outra perspectiva, vemos que o
conhecimento também pode ser entendido de vários modos na sociedade
contemporânea. Se por um lado ele é valor econômico, que se produz e se distribui na
sociedade em rede, que é a sociedade do conhecimento, por outro lado, continua sendo
uma construção interior de cada ser, individual, subjetiva e intersubjetiva, pois também
social, que se produz na articulação homem/mundo, seja no ambiente local e familiar,
seja no contexto global, planetário. Tourán López (2004) aborda a possibilidade da
articulação entre o local e o global, à qual denomina de “glocal”. Este seria, no seu
entender, o caminho que possibilitaria a inserção do homem na sociedade global, sem
perda da identidade particular, e da percepção das necessidades específicas de cada
nação, região, cidade ou grupo social. Nesse segundo sentido, muitas vezes tem-se
preferido empregar o termo “saberes” para designar aquele conhecimento que o sujeito
possui, que retém e cultiva dentro de si e no seu fazer.
Mas os “saberes” o são sinônimos de conhecimento”, especialmente se
tomamos esta palavra a partir de diferentes concepções filoficas (MATTELART,
2005), as quais podem nos revelar as diferenças quanto à finalidade social perseguida
pela remodelação dos fundamentos de uma sociedade. Mas o que queremos pôr em
destaque é que o conhecimento se constrói na articulação entre o dentro” (na
interioridade do Ser) e o “fora” (no mundo) numa relação dialética sempre inacabada
(onde o ser que se modela é modelado culturalmente). Dizendo de outra forma, o
conhecimento deve ser entendido como resultado de um processo interno, pelo qual o
ser humano se apropria da informação, que circula no mundo, e do saber, que vive e
elabora internamente, inclusive no seu inconsciente. Um processo que é
subjetivo/intersubjetivo/intercorporal, social e cultural.
Numa concepção fenomenológica hermenêutica, tal como a compreendemos, o
ato do conhecimento se quando a consciência se dirige para algo ou alguém gerando
uma relação noemática. Disto decorre que a intenção de significar é um pré-requisito
para que possa ocorrer uma experiência perceptual (MERLEAU-PONTY, 1999),
quando um encontro entre a consciência que se dirige para o mundo e um mundo
exterior, que se doa à consciência. No caso em discussão, para aquele que aprende (o
aluno), àquele que ensina (o professor) caberá propiciar que ocorra a correlação (noesis-
noema-noesis), quando resultará, fruto desta dialética de oposição sempre inacabada
homem/mundo/homem, um ato de compreensão, condição indispensável para que se dê
a produção do conhecimento (MARTINS, 1992). Observamos aqui que o percebido em
decorrência deste ato intencional (noesis) é a experiência vivida real (Erlebniz), que é
diferente da simples experiência informativa (Erfharung).
Consideramos importante destacar que foi no limiar deste último século, através
de Paul Ricoeur (1996), que agregou a fenomenologia hermenêutica aos estudos da
semiótica e da linguística, que nos vimos colocados em face de uma forma não
excludente e dicotômica de abordar o conhecimento humano; sem segmentá-lo, seja
percebendo-o como fenômeno, numa abordagem compreensiva, seja na sua dimensão
explicativa e factual. O elemento superador desta suposta segmentação está na
possibilidade de apreender-se a dialética fina que ocorre entre a inteligibilidade que se
organiza silenciosamente como um discurso do silêncio, na interioridade do Ser e que,
ao estruturar-se na inteligibilidade humana, solicita ser expressa em linguagem. Esta
dialética fina, gênese da linguagem, ao ser posta no mundo, solicita comunicar-se.
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Mostra-se, neste modo de organização, um arco hermenêutico que se dá no
movimento entre a parte e o todo, a subjetividade/intersubjetividade, o homem que é
corpo na corporeidade do mundo, numa dialética de oposições sempre inacabada
7
.
O contexto de mundialização que vem sendo denominado de “sociedade do
conhecimento(knowledge society), ou “sociedades de saberes”
8
traz novas dicotomias
e complexidades para o ser humano, ressaltando-se a importância da postura filofico-
hermenêutica dos sujeitos envolvidos no processo diante do conhecimento, da cultura e
da sociedade, como possibilidade para superar a contradição entre saberes e seu
ser/fazer. Isso pode ser concretizado a partir da pesquisa, a constante busca e interesse
em decifrar os enigmas postos pelas questões que passam na sociedade, para o devir.
Isso, no dizer de Maffesoli (2010, p. 32), permitiria “fazer com que se manifestassem”,
“no devir espiralesco do mundo”, as “características da episteme pós-moderna”. Para
Bauman (1999, p. 250), [...] é inteiramente diferente viver com a consciência s-
moderna de que não nenhuma saída certa para a incerteza; de que a fuga à
contingência é tão contingente quanto a condição da qual se busca fugir”.
A transformação epistemológica pela qual vêm passando a produção e a difusão
do conhecimento não mais permite a segmentação dos espaços de pesquisa de ensino e
de extensão em áreas compartimentadas (LUCCHESI; MALANGA, 2008, p. 1546). E
como isto se dá na ação educativa dirigida ao formar? Para além da interpretação
compreensiva, a ação educativa solicita explicações. Estas gestam-se a partir de uma
dialética fina entre o conhecimento considerado culturalmente válido e as compreensões
que surgem da inteligibilidade que se articula como discurso na interioridade do ser e,
assim sendo, buscam sentidos, solicitam linguagem. Solicitam ainda, no processo,
extrapolações, movimentos que geram novos conhecimentos, levando a possíveis
intervenções na concretude do mundo, o que implica, mais do que transladar e
interpretar, “transfazer”. O processo de produção do conhecimento requer que o sujeito
projete tendências para outros lugares, tempos e espaços; investigue, busque novos
7
Destacamos aqui, no âmbito da Sociedade de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana (SPQMH),
a proposta do VII Colóquio de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana (UFSCAR, 2017). Segundo
o entrevistado, Prof. Dr. Luiz Gonçalves Junior, há uma mudança no enfoque comumente trabalhado da
Educação Física para a Motricidade Humana, nesta última [...] partimos do corpo-objeto para corpo-
próprio, o corpo encarnado (UFSCAR, 2017, p. 1). Esse novo paradigma compreende o ser como
intencionalidade, que se dirige para o mundo, às coisas e aos demais seres humanos com os quais
compartilha o mundo. Mais ainda, Na área de Motricidade Humana é ímpar a importância da pesquisa
qualitativa, já que essa metodologia favorece estudos que consideram o ser humano em sua integralidade
(UFSCAR, 2017, p. 1). Observa ainda o entrevistado, a sinergia entre a Ecomotricidade e o Bem Viver. A
Ecomotricidade entendida como [...] as práticas desenvolvidas com intencionalidade relacionada a
processos educativos de reconhecimento das relações ser humano-ambiente, que primam pelo diálogo
entre Educação Ambiental, Motricidade Humana e Pedagogia dialógica (UFSCAR, 2017, p. 1); e Bem
Viver descrito como [...] o princípio dos povos indígenas latino-americanos que propõe alternativa à
ideia moderna do progresso (UFSCAR, 2017, p. 1). Amplia-se desta forma a [...] discussão em torno
dos estudos de Motricidade Humana, em diálogo crítico e igualitário com outras epistemologias e outros
projetos coletivos estéticos que primam pelo convívio, pela coexistência e pela corresponsabilidade
(UFSCAR, 2017, p. 1).
8
[...] diferentemente da noção de sociedade da informação guiada apenas pela tecnologia, as sociedades
de conhecimento são minddriven guiadas pelo espírito. Por outro lado, a recusa em se recorrer à noção
singular de sociedade global e de se adotar a não plural de sociedades ratifica o fato de que os
modos de apropriação das tecnologias são resultado da diversidade das configurações de atores inscritos
nos contextos institucionais, culturais, industriais e políticos. Em síntese, é reconhecida a especificidade
dos regimes epistêmicos [...] A não de conhecimento vem do termo inglês knowledge. Ora, a
etimologia da palavra inglesa knowledge está estreitamente ligada ao seu verbo auxiliar can. Ambos
remetem à utilidade e ao poder. Nas nguas latinas, ao contrário, existe um termo alternativo: saber,
cuja etimologia está ligada à raiz indo-européia sap, saber e ter o sabor de, de onde se originam
palavras como sabedoria, sapiência. O saber remete à teoria (MATTELART, 2005, p. 14).
72
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sentidos, possibilidades para além dos conhecimentos já postos, das explicações dadas,
e intervenha em direção a outros fazeres.
A ciência clássica, que se formalizou a partir do século XVIII, privilegiou o
conhecimento factual e objetivo, disseminou e/ou socializou a informação, ou seja, o
conhecimento que está (metaforicamente) “fora” do sujeito cognoscente. Podemos dizer
que nesse conhecimento (factual) focava-se a pesquisa e o ensino. Dissemos “focava-
se”, mas o verbo poderia estar no presente no que diz respeito à maior parte da produção
voltada para a educação, seja ela básica ou superior. O ensino que se propõe a criar
conhecimento na perspectiva que considera o movimento e a experiência perceptual (e
o a percepção tal como posta pela psicologia clássica) é a exceção e não a regra. De
modo geral, a escola pretende transferir culturalmente certos conhecimentos e não
outros e, apesar do discurso construtivista das últimas décadas, ignora a dimensão
idiossincrática e cultural do ser que aprende e se faz presente àqueles que se proem a
ensinar. O que mudou foi a forma de transferir o conhecimento e a maneira de avaliá-lo,
mas pouco ou nada se fez para uma transformação epistemológica que permita ao aluno
produzir conhecimento a partir das suas compreensões e das informações do professor
e, dessa maneira, realmente aprender.
Para além, vemos que o problema se situa em grande parte na ambiguidade e
ambivalência da concepção que rege a produção de conhecimento e portanto, na
formação universitária do professor, uma vez que este nem mesmo no curso superior
aprendeu que o conhecimento se produz, e muito menos como fazê-lo. Os métodos de
ensino se sucedem e se substituem, mas não têm privilegiado buscar a essência da
questão, de forma a subsidiar um ensinar que supere a separação entre o ser e o mundo,
ou seja, que considere o pré-reflexivo do sujeito cognoscente (e, portanto, aprendente) e
o mundo cognoscível; mais ainda, que considere nesta relação como o professor
compreende e interpreta seu professorar. A dimensão existencial na produção do
conhecimento continua a ser dita, mas não vivida, e seu fazer uma incógnita.
Para que se aprenda não bastam professores, é preciso que alguém seja
ensinante. O termo ensinante foi criado por Alicia Fernandez [...] e se refere
àquele que desperta o desejo de aprender. Seu “par” é o aprendente, aquele
em quem esse desejo é despertado. Os dois estabelecem uma relação
dinâmica, em que, por vezes, o ensinante se torna aprendente e vice-versa
(LUCCHESI, 2005, p.62).
Apesar da necessidade de despertar o desejo de aprender, existe um
distanciamento que fica evidente em pesquisa de Teixeira (2011), cujo lócus foi uma
escola da rede blica de ensino do Estado de São Paulo. Tendo como objetivos a
compreensão de como a criança se percebe diante do ato de conhecer e como a escola,
na figura do professor, qualifica este ato. Esse estudo buscou também construir
situações de intervenção educativa visando abrir caminhos para novas práticas. A
metodologia adotada foi a pesquisa-intervenção de natureza hermenêutica e
fenomenológica, em um trabalho prático-teórico. Os resultados levaram à organização
de temáticas que, entrelaçadas, possibilitaram a interpretação da situação vivenciada na
Escola, revelando que o afastamento de corpos evidenciado não é apenas objetivo,
físico, pois é a expressão do distanciamento intersubjetivo, das intencionalidades
vivenciadas pelo corps propre (MERLEAU-PONTY, 1999), e que se concretizam ora
em rejeição, decepção, alienação, medo, culpa, solilóquio e idealização, ora em
realização, busca e diálogo (TEIXEIRA, 2011).
Nesta pesquisa pudemos perceber que tanto professores quanto alunos transitam
entre a reprodução e a criação, porém os primeiros estão mais presos aos movimentos
reprodutores, talvez porque, ao estarem algum tempo sujeitos às regras legitimadas
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pela sociedade, têm a tradição mais sedimentada, esquecendo-se da capacidade que tem
o homem de criar, improvisar, reinventar e transformar.
Mais ainda, o fato de os professores estarem presos às regras legitimadas pelas
tradições empirista e/ou intelectualista faz com que a sua percepção dos outros e a
coexistência com eles tornem-se impossíveis, pois tanto o próprio corpo quanto a
percepção dos outros corpos tendem a autonomizar-se.
Ficam evidentes as tensões vivenciadas por aqueles que, ao participarem de uma
instituição escolar preocupada em transformar, sofrem o embate entre a tradição e o
desejo de mudança.
Na trajetória da produção do conhecimento, observou-se que a opção entre mudar
e transformar ocorrerá quando os sujeitos, tendo consciência daquilo que são como
humanos, passarem a discernir o que é próprio do homem daquilo que é apenas
legitimado socialmente.
Observamos que o aluno se fecha ao que o professor “professa” escudado numa
visão idealista racionalista, berço da dita pedagogia tradicional e da educação ocidental
considerada culta, e recusa-se a aprender. O professor frustra-se e é cobrado por sucesso
ao ensinar”. Mas o que é ensinar se o instigar o aluno a interrogar, a buscar sentidos,
a (re)significar, produzir conhecimento? Se o professor não é capaz de aprender ao
ensinar, o aluno também não aprende; ambos apenas se desincumbem de uma tarefa
angustiante da melhor maneira (im)possível.
Entretanto, como a necessidade de saber é inata no ser humano, ele buscará em
outras fontes as informações, construindo as respostas que se fizerem necessárias para a
construção do conhecimento de que necessita. A sociedade em rede” (CASTELLS,
1999) intensificou essa possibilidade, ao disponibilizar uma grande quantidade de
informação. Ao mesmo tempo, tornou-se mais exigente quanto à capacidade de
produzir conhecimento. Hoje, não basta conhecer o seu meio local; é preciso,
simultaneamente, conhecer o sujeito que aprende e como ele aprende, situado no
mundo, num meio que é global, e articular ambos de maneira produtiva, na cultura da
glocalização”.
Na modernidade a escola básica universalizada pretendia adestrar (con-formar) a
massa desordenada que migrava do campo para as cidades, de modo a incorporá-la ao
processo produtivo, gerando uma mão de obra eficaz para seu correspondente
econômico, o capitalismo industrial. A compreensão e a experiência perceptual
vivenciada em nossas escolas atualmente, neste contexto da chamada pós-modernidade,
imbricada na mundialização do conhecimento, transversalizada pelo capitalismo
informacional, ou seja, a “sociedade em rede” (CASTELLS, 1999) e capitais voláteis,
demonstra que esta se estagnou no contexto anterior orientado pelo capitalismo
industrial e na visão modelada na modernidade, sendo incapaz de solucionar a
dicotomia de formação do ser humano para a cidadania ou para o mercado de trabalho.
A essência de uma escolarização assim (mal administrada) levou-a a um tipo de
niilismo
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ao não corresponder nem às expectativas do sujeito que aprende, nem às do
indivíduo que deveria adquirir “competências” para o mercado de trabalho capitalista.
Mesmo porque só é possível aprender pondo em prática o que se aprende,
operacionalizando. A teoria, desvinculada de sua aplicação, não faz sentido.
FORMAÇÃO HUMANA E EDUCAÇÃO: RETOMANDO O TEMA
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O Niilismo é a desvalorização e a morte do sentido, a ausência de finalidade e de resposta ao porquê.
Os valores tradicionais se depreciam e os “princípios e critérios absolutos dissolvem-se (PECORARO,
2007).
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Na formação do professor seria preciso que a teoria estivesse iluminando a
prática, de modo que se fizesse uma reflexão desta à luz da primeira, para enriquecê-la
e, retornando à prática, transformá-la. Nessa via de duas mãos [...] a teoria apoia a
prática e a prática confirma ou modifica a teoria” (LUCCHESI, 2004, p. 11).
É nesse sentido que defendemos a prática da pesquisa como a base do ensino, a
partir das vivências que considerem o conhecimento que se no p-reflexivo de cada
sujeito esteja ele onde estiver, cuidando do ensino superior no qual se formam os
professores que educarão as crianças e jovens, considerando o ser humano no seu vir a
ser. Entendemos que pesquisar não é apenas buscar ou inovar, mas também dialogar
com a realidade, questionando-a, de modo a buscar sentidos, gerar interrogações e
novas teorias, propor soluções, verificar a aplicabilidade dessas soluções, discutir e
encaminhar problemas. Ver-se inquieto, interrogar, pois é no ato da pesquisa que se
adota uma postura crítica frente à realidade.
Neste trabalho nos propomos ainda a resgatar o sentido original dos termos
formação humana e educação, na perspectiva hermenêutica fenomenológica que tem
norteado nossas investigações. Para tanto, ao dizer do tema formação humana e
educação primeiramente recorremos a Edith Stein (1891-1942), filósofa e pedagoga,
uma das principais assistentes de Husserl, pois essa autora, conforme nos traz Garcia
(1988, p. 59), faz uma distinção preciosa ao clarificar os significados atribuídos a esses
termos. Recorrendo à terminologia ale original, quando formação (Bildung) passa a
referir-se à totalidade do ser humano, a significar o resultado, a totalidade de um
processo educacional. Formação refere-se à própria condição existencial humana,
enquanto educação (Erziehung) passa, nessa possibilidade, a ser um termo subordinado,
um processo dirigido ao formar, que por sua vez é um processo cultural sempre
inacabado.
Considerando o termo educação na sua dupla acepção latina, como e-ducare, este
nos diz de um processo que se refere à intervenção, à especificação do educativo
(MARTINS, 1992).
Mas é ao dizer a educação como um cuidado humano que temos na acepção latina
(e-ducere) uma aproximação ao sentido mais forte do termo formação. Educação, na
fenomenologia hermenêutica existencial, nos remete à condição humana e às suas
possibilidades de apropriação de si mesmo, sendo um processo em que o homem está
sempre sendo, condição esta que oscila entre um estado de fascinação pelo mundo
(alienação) e uma busca pela apropriação de si mesmo como um ser-com-o-outro no
mundo: um ser plural, sempre em perene busca pela autonomia. Um ser em forma-ação.
Educação para o ser em forma-ação deve ter como sublime missão reconhecer o
homem na sua humanidade, oferecendo-lhe condições de (con)vivência em sociedade:
um homem inscrito no mundo e com o mundo e com os outros homens. Esta é a missão
de educar, pois ao reconhecer a si próprio o “educador” reconhece o “outro”,
dialogando com ele e construindo uma relação ensino/aprendizagem. Educação
permeada de valores que perpassam a era que se denomina pós-modernidade e que
supõe nova visão de homem/mundo, de homem no mundo e com o mundo, visão esta
que deve transformar a sociedade impregnando-a dos “novos valores” que, como nos
diz Bauman (1999, p. 289), são “a liberdade, a diversidade e a tolerância”.
Retomando o termo formação, um dos conceitos mais caros às ciências do espírito
do século XVIII, recorremos ao pensamento de Gadamer (1988), que nos traz o sentido
desta palavra como dada no alemão: Bildung.
Esclarecendo-se que compreendemos este termo também como signo, signo este
que, ao ser traduzido do alemão para o espanhol como formão traz uma conotação
especial, conforme destaca os tradutores:
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Bildung, que traducimos como formación, significa también la cultura que
posee el individuo como resultado de su formacn en los contenidos de la
tradición de su entorno. Bildung es, pues tanto el proceso por el que se
adquiere cultura, como esta cultura misma en cuanto patrimonio personal del
hombre culto. Bildung, está estrechamente vinculado a las ideas de
enseñanza, aprendizaje y competencia personal (N. del T.) (GADAMER,
1988, p. 38).
Emerge desta exposição a opção por nós utilizada para dizer de formação
(Bildung): formação como sendo o resultado de um processo de vir a ser, algo que nasce
de um processo interno de constituição que permanece em evolução e aperfeoamento
contínuos. Essa compreensão do termo formação é o que torna passível de desconfiança
colocar-se como “meta de formação” uma ação de natureza externa ao processo em si,
pois esta será sempre secundária a ela. Por outro lado, reafirma que, na formação, tudo é
preservado, nada desaparece. Não se trata de adquirir algo qualitativamente novo, ou do
que se ensina sobre isto ou aquilo, mas de buscar um saber-se (a si mesmo), vivenciado
ou dirigido a algo que não ela (formação) mesma.
EM SÍNTESE
Retomando a questão proposta, evidenciamos que o conhecimento na perspectiva
por nós investigada é tema a ser continuamente interrogado, pois é construído na
existência, por aquele que conhece: o homem acontecendo na ação quando agindo,
interagindo, participando, habitando o mundo, torna-se consciente de sua natureza e do
que o rodeia como fatos que lhe são próprios e interligados à mesma existência. Os
autores verificaram que acontecem avanços substanciais em direção a uma formação
humanizadora quando os sujeitos constatam que ocorrem trocas significativas em
direção a uma formação humanizadora, quando os sujeitos envolvidos no processo se
mostram conscientes daquilo que são como seres humanos individuais e plurais, mais
ainda, planetários. Como seres lançados no mundo, um mundo que os precede e alcança
e projeta, neste processo de sua humanização encontram facticidades situações não
escolhidas , limitações favorecedoras para que a heteronomia supere ou dificulte a
conquista da autonomia. Entretanto, este modo de ser e estar dialeticamente ao mundo,
buscando sempre sentidos, também desvela outras possibilidades humanas, quando
como sujeitos, estes seres se encontram existencialmente lançados num rculo
hermenêutico. Situados num contexto de mundo em transformação, ao vivenciar uma
dialética fina entre as novas compreensões que emergem e os conhecimentos já dados e
validados, os homens se educam e são educados, e neste movimento sempre inacabado,
produzem cultura... formam -se.
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Recebido em: 16 out. 2017.
Aprovado em: 29 out. 2017.