v. 3, n. 3, p. 167-176, set.-dez. 2019 | ISSN 2594-6463 |
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 3, n. 3, p. 167-176, set.-dez. 2019 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463.2019.v3.n3.p167-176
Motricidade, Corporeidade e Complexidade:
diálogos a partir do hemisfério sul
Motricity, Corporeality and Complexity: dialogues from the southern hemisphere
Motricidad, Corporeidad e Complejidad: diálogos desde hemisferio sur
WAGNER WEY MOREIRA
1
; MARCUS VINICIUS SIMÕES DE CAMPOS
2
; REGINA SIMÕES
3
UNIVERSIDADE FEDERAL DO TRIÂNGULO MINEIRO, UFTM, UBERABA-MG, BRASIL
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS, UNICAMP, CAMPINAS-SP, BRASIL
RESUMO
O presente escrito tem por objetivo aliar os temas Motricidade, Corporeidade e Complexidade, todos atrelados
ao sentido educacional formal, mostrando a importância do trato desses temas por pesquisadores e professores,
fato esse que permite alterar o conceito de corpo na cultura e na escola. É um artigo de reflexão, centrado em
pesquisa bibliográfica enfatizando: a Motricidade como posvel meta-ciência ocupada em reconhecer o ser
humano que se movimenta intencionalmente na direção de transcender; a Corporeidade como uma atitude a
exigir valores diferentes do trato com o corpo mecânico, ainda estudado e ensinado de forma hegemônica na
atualidade; a Complexidade como nova forma de perspectivar a vida e os pressupostos axiológicos nela contidos.
Palavras-chave: Motricidade. Corporeidade. Complexidade.
ABSTRACT
The present paper aims to evaluate the themes of Motricity, Corporeality and Complexity, all combined with the
formal education sense, showing the importance of these themes for researchers and teachers, in the sense of
change the current concept of body in the culture and at school. It is a reflective paper, focusing on
bibliographical research emphasizing: the Motricity as a possible meta-science that recognize a human being that
move intentionally to transcendence itself; the Corporeality as an attitude that require different values to deal
with the mechanic body, still studied and taught in a hegemonic way today; the Complexity as a new way to
envision life and the axiological assumptions contained therein.
Keywords: Motricity. Corporeality. Complexity.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo combinar los temas de Motricidad, Corporeidad y Complejidad, todos
vinculados al sentido educativo formal, mostrando la importancia del tratamiento de los temas por parte de
investigadores y maestros, un hecho que permite cambiar el concepto de cuerpo en la cultura y la escuela. Es un
artículo de reflexión, centrado en la investigación bibliográfica que enfatiza la motricidad como una posible
metaciencia involucrada con el reconocimiento del ser humano que intencionalmente se mueve hacia trascender;
la corporeidad como una actitud que exige diferentes valores al tratar con el cuerpo mecánico, todavía estudiada
y enseñada de manera hegemónica en la actualidad; la complejidad como una nueva forma de ver la vida y los
supuestos axiológicos contenidos en ella.
Palabras clave: Motricidad. Corporeidad. Complejidad.
1
Professor Adjunto da UFTM. NUCORPO: Núcleo de Estudos/Pesquisas em Corporeidade e Pedagogia do
Movimento. Apoio CNPq. E-mail: wmoreira@ef.uftm.edu.br
2
Doutorando da Faculdade de Educação Física da UNICAMP, Campus Campinas-SP. E-mail:
camposmvs@gmail.com
3
Professora Associada da UFTM. NUCORPO: Núcleo de Estudos/Pesquisas em Corporeidade e Pedagogia do
Movimento. E-mail: regina.simoes@uftm.edu.br
168
Wagner Wey Moreira; Marcus Vinicius Simões de Campos; Regina Simões
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 3, n. 3, p. 167-176, set.-dez. 2019 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463.2019.v3.n3.p167-176
INTRODUÇÃO
Escrever, de forma associada, sobre os temas Motricidade, Corporeidade e
Complexidade pressupõe, num primeiro momento, dificuldades enormes, ainda mais
pensando em interculturalidade. Porém, ao detalharmos essas três dimensões
contatamos pontos de aproximação o que permite a presente redação. Sem dúvida a
Motricidade depende da atitude de Corporeidade e esta, por sua vez, acha-se presente de
forma Complexa no contexto da interculturalidade.
Também devemos levar em conta que as três dimensões mencionadas no
parágrafo anterior estão contidas, no presente trabalho, na preocupação com a educação
e territorialmente imbricadas no hemisfério sul de nosso planeta.
Daí a estrutura do escrito estar formatada em abordar: a Motricidade como uma
possível meta-ciência com a preocupação de elucidar a intencionalidade do ser humano
que se movimenta na direção de sua transcendência; a Corporeidade como possibilidade
de superação da ideia de corpo máquina ou objeto, levando-nos ao sentido de corpo
sujeito produtor de história e cultura; a Complexidade, esta alocada na abordagem da
Complexidade de Edgar Morin, todas relacionadas com a educação, propiciando
relações de cooperação e respeito a diferentes sujeitos e culturas, preservando suas
identidades, mas caminhando no sentido de buscar a unidade nas diferenças.
Em qual contexto tudo isto se insere? Na lusofonia do hemisfério sul, afinal dizem
os pesquisadores que a língua portuguesa é a mais falada nesse hemisfério, com o
envolvimento de mais de duzentos e quarenta e cinco milhões de pessoas. Temos,
portanto, um privilégio e uma responsabilidade em produzir e em disseminar
conhecimento.
MOTRICIDADE: A INTENCIONALIDADE AO SE MOVIMENTAR
Motricidade: Processo adaptativo, evolutivo e criativo de um
ser práxico, carente dos outros, do mundo e da transcendência.
(Manuel Sérgio)
Não dúvida em se afirmar que foi Manuel Sérgio o grande arquiteto do
trabalho sobre Motricidade Humana para a área da Educação Física. Em suas
preocupações epistemológicas junto a Faculdade de Motricidade Humana de Lisboa,
enfatizava que esta deveria estudar o [...] desenvolvimento humano através da
Motricidade, pelo estudo do corpo e das suas manifestações, na interação dos processos
biológicos com os valores cio-culturais(SERGIO, 1996, p. 15) Diz mais esse autor,
apropriando-se dos escritos fenomenológicos de Merleau-Ponty, que a Motricidade
propicia uma relação dinâmica entre desenvolvimento humano e Corporeidade, bem
como assume a importância da percepção para o entendimento de Motricidade e de
Corporeidade.
Ao olharmos a Motricidade na perspectiva de área de conhecimento científico nos
damos conta que ela valoriza não apenas os fatos, locus de análise da ciência
tradicional, mas pressupõe que em todo fato valores, destinando grande atenção aos
aspectos axiológicos.
A Motricidade como possibilidade de ciência possibilita um novo status para a
Educação Física, elevando-a na consistência epistemológica. O próprio Sergio (1996, p.
126) é quem nos informa:
169
Motricidade, Corporeidade e Complexidade
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 3, n. 3, p. 167-176, set.-dez. 2019 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463.2019.v3.n3.p167-176
Seja como for, é bem evidente que a Educação Física (enquanto macro
conceito) é tão só uma tradição disciplinar, não uma autonomia disciplinar.
Como tradição disciplinar pode ser ensinada, mas sem autonomia disciplinar
dificilmente se investiga e se constitui em comunidade científica. A
Educação Física nunca precisou de autolegitimar-se epistemologicamente, ou
seja, de encontrar em si as formas e as razões de sua própria cientificidade,
precisamente porque o Poder sempre se serviu dela e nunca a serviu como
instrumento insubstituível de conhecimento e transformação.
Trovão do Rosário (2008, p. 35), se referindo à Motricidade como área de
conhecimento científico, alerta-nos que “[...] a Motricidade Humana tem que gerar
cultura fundada mais na sabedoria do que no saber muitas coisas”. Isto provoca uma
mudança de paradigma para a área, pois a Educação sica tradicional servia para tudo,
mas, ao mesmo tempo, não representava nada enquanto ciência autônoma. Este autor
lembra de uma publicação editada pela Comissão de Reforma do Sistema Educativo de
Portugal onde encontramos:
A motricidade é intencionalidade operante: partindo do corpo próprio,
sublinha não haver significação que não se refira ao corpo, nem sentido que o
corpo não realize e manifeste”, e ainda que “A motricidade humana, partindo
do estritamente corpóreo, alarga-se até à pesquisa da percepção, entendida
esta como consciência de uma articulação corpo-mundo; mantém, assim, a
regulação, a execução e a integração do comportamento e traduz a
apropriação da cultura e da experiência (TROVÃO DO ROSÁRIO, 2008, p.
43-44).
Como mencionamos na introdução, buscamos associar Motricidade à
Corporeidade e ambas já se fazem presentes nas preocupações dos autores mencionados
ao dedicarem-se estabelecer as novas bases epistêmicas para a área da Educação Física.
Se até aqui a proposta dos autores centra-se na Motricidade enquanto
conhecimento científico, fator determinante para a identidade da área, a nós, no presente
escrito, interessa mais focar sua associação com a Corporeidade debaixo do pressuposto
da educação.
O ser humano, diferentemente de outros seres vivos, ao produzir história e cultura,
estabelece o tempo vivido na íntima relação com o seu meio, e ao relacionar-se com
outros seres humanos e com o universo desencadeia o processo educativo. Assim, se
pensarmos na educação como uma possibilidade da instruir o homem como um todo,
fatalmente teremos que elaborar processos de aprendizagem para esse todo.
O conhecimento do homem tem sempre origem no corpo, assim como também o
conhecimento do mundo parte do corpo. O que caracteriza o humano é precisamente sua
capacidade relacional com outros seres, demandando isto a vivência da Motricidade.
Existencializar a Motricidade demanda ir ao encontro de nossas diferenças. “A
riqueza do processo educativo reside em larga medida no facto de, felizmente, de
sermos todos diferentes” (TROVÃO DO ROSÁRIO, 2008, p. 53).
A passagem do sentido do movimento historicamente presente na Educação
Física, momento em que se discutia com grande ardor se educávamos pelo movimento
ou para o movimento, para a intencionalidade presente na Motricidade, foi um passo
significativo para o entendimento do humano no homem.
Trigo (1999, p. 90) nos lembra que o homem, [...] como ser biológico, nasce com
as capacidades que lhe permitem cumprir com suas necessidades básicas” e por essa
razão realiza movimentos. em seu processo de humanização encontramos a
intencionalidade, elemento este que propicia ao homem dar significado ao ato de se
170
Wagner Wey Moreira; Marcus Vinicius Simões de Campos; Regina Simões
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 3, n. 3, p. 167-176, set.-dez. 2019 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463.2019.v3.n3.p167-176
movimentar, contando para isso com seu raciocínio, sua sensibilidade e afetividade,
assim como sua criatividade.
A mesma autora revela a transformação do simples movimento em atos de
criação, qualidade da Motricidade, e esta necessariamente exige relações entre humanos
que se comunicam e se socializam (TRIGO, 1999).
Quando trazemos a relação corpo, movimento, Motricidade, Corporeidade,
associando isso à consciência, calcados em Merleau-Ponty (2011, p. 159) temos [...]
todo movimento é indissoluvelmente movimento e consciência do movimento,
lembrando que consciência para o autor é um ato de alerta corporal e não simplesmente
mental.
Isto remete ao trabalho de Elenor Kunz o primeiro teórico da área da Educação
Física no Brasil a propor uma abordagem fenomenológica do se-movimentar humano.
Nesta proposta estão inscritos pressupostos da Motricidade, porque diferentemente de
outras propostas construídas para a área como abordagens morfológica, biomecânica,
empírico-analítica do ato motor e outras, todas centradas em observar o movimento
humano a partir de fora, a abordagem fenomenológica do se-movimentar constrói
pontes entre o externo e o interno através da intencionalidade e da percepção do
movimento (KUNZ; MARQUES, 2019).
Mais recentemente Moreira e Simões (2018, p. 168) procurando associar os
sentidos de Motricidade ao humanismo e ao esporte destacam:
[...] a estruturação do ser é tida como uma unidade existencial dotada de
movimento para progredir, permanentemente, no conhecimento de si, dos
outros e do mundo. Movimentar-se também é uma das principais
características do esporte, razão pela qual podemos integrar os sentidos do
esporte, corporeidade e vida na busca de um redimensionamento do
humanismo moderno.
Desenvolver os sentidos da Motricidade pode nos levar a reconhecer, como indica
Inforsato (2006, p. 97) que [...] essa visão de mundo acoplada ao empirismo, que em
síntese busca os elementos de prova da verdade nos fatos, consolidou a forma de parte
considerável dos europeus entender o mundo e estimar a vida”. Como isso tudo pode ser
esquadrinhado, analisado e previsto, o movimento humano se justifica no sentido de
produção, competição e consumo.
Freire (2008, p. 53), com toda razão, lembra que a educação brasileira é resultante
dos valores europeus e isto está ainda impregnado em nossa cultura. Tanto a educação
de forma geral, quanto a Educação Física, chegaram para serem consumidas. Talvez por
isso o corpo ter sido destinado a uma posição secundária, ganhando a primazia a
educação intelectiva e, consequentemente, esta não pode reconhecer o corpo que somos.
Trata-se, antes de tudo, de afirmar um conceito de vida, uma maneira de
viver, uma ética, em oposição a outra, secular, eurocêntrica, cuja raiz é a
negação do próprio corpo como entidade de realização da vida. [...] Mais que
quaisquer outras, as expressões “meu corpo” e “nosso corpo” indicam que
esse corpo se trata de um objeto ao qual alguém, que o é ele, se dirige
objetivamente. Vivemos, netas civilização, como se o corpo fosse nosso
objeto direto. Ele não é nós, está fora de nós, está à nossa frente, nos
pertence.
Se isto persiste até hoje, produções a respeito de Motricidade e de Corporeidade
o têm o menor sentido. Não nos espanta estes temas só aportarem entre nós a partir da
segunda metade do século XX. No entanto, o mesmo autor mencionado insiste em
afirmar que a Motricidade é a dinâmica de realização da vida corporal que somos; é o
171
Motricidade, Corporeidade e Complexidade
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 3, n. 3, p. 167-176, set.-dez. 2019 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463.2019.v3.n3.p167-176
modo como a vida que, em dado momento, somos nós se manifesta neste mundo”
(FREIRE, 2008, p. 63).
A importância de vivenciar valores e atitudes presentes nos pressupostos de
Motricidade possibilitam entender a educação enquanto destinar-se a ensinar os seres
humanos serem eles mesmos, o que certamente colaboraria para entendermos e
vivermos em democracia, objetivo um tanto utópico nos dias atuais em nosso país.
Viver em relação com outros em democracia exige o reconhecimento de que somos
seres corpóreos e não apenas intelectivos.
Afinal, Motricidade Humana possibilita uma nova visão de homem que se
movimenta e com isto novos contornos éticos, estéticos e educacionais, todos presentes
na responsabilidade da Educação e da Educação Física enquanto epistemes e enquanto
fomentadoras de teorias pedagógicas.
CORPOREIDADE: SEU LUGAR É TAMBÉM NA ESCOLA
Perceber é tornar presente qualquer coisa com a ajuda do
corpo
(Maurice Merleau-Ponty)
Um primeiro alerta é necessário para o cairmos em um erro interpretativo ou
mesmo para não passarmos a ideia de um idealismo ingênuo. O tema Corporeidade não
é objeto de estudo de nenhuma área de conhecimento em especial. Ele está mais
centrado em dimensões axiológicas e existenciais do que em definições conceituais ou
dogmatismos estéreis. Para nós, Corporeidade diz mais respeito à atitude do que a
conceito. E mais ainda, Corporeidade engloba o sensível, o inteligível e a Motricidade.
Também como argumentação inicial poderíamos perguntar: Por que a necessidade
de darmos espaços para estudos e pesquisas sobre Corporeidade? Sem vida, elaborar
reflexões a respeito da Corporeidade possibilita enfrentar as preocupações de Foucault
expressas no escrito de Gallo e Zeppini (2016, p. 110):
A modernidade descobre o corpo como objeto do poder e o filósofo nos
apresenta as tecnologias de produção do indivíduo produtivo, base do sistema
capitalista, que foram centradas nas instituições disciplinares: as escolas, as
prisões, os hospitais, as fábricas. A disciplina, por meio da “docilização dos
corpos”, moldou o homem moderno, operando nesse duplo registro de
produção de um corpo inteligível, por um lado, e útil e produtivo, por outro.
Claro está que a vertente do corpo útil e produtivo predomina nos tempos atuais,
considerando que numa cultura de consumo, hegemônica entre nós, o corpo é [...]
veículo de prazer, estando ligado a imagens idealizadas de saúde, juventude, beleza e
aptidão, maximizando o aparecimento das indústrias de moda, cosméticos, alimentação,
academias de ginástica, cirurgias plásticas...”, como o revelado por Moreira e Simões
(2016, p. 135).
Daí a importância do estudo da Corporeidade considerando que ela traz para nossa
aprendizagem termos como sentir, sonhar, transcender, criar, palavras essas de grande
importância para o entendimento do humano no homem. O tema Corporeidade
trabalhado nos meios acadêmicos permite, dentre outras argumentações: reflexões
questionadoras da vida calcada no consumismo; aclaramento de que possuímos uma
perspectiva instrumental de corpo e vida; questionamentos de atitudes corruptoras as
quais acabam justificando uma sociedade corrupta (MOREIRA; SIMÕES, 2016).
172
Wagner Wey Moreira; Marcus Vinicius Simões de Campos; Regina Simões
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 3, n. 3, p. 167-176, set.-dez. 2019 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463.2019.v3.n3.p167-176
Nóbrega (2010, p. 11) ao propor uma fenomenologia do corpo estruturada em
Merleau-Ponty, indica a importância do tema Corporeidade ser trabalhado no universo
acadêmico, pois isto contribuiria para a superação da ideia de corpo máquina,
argumentando que assim agindo teríamos enfatizando outra leitura de corpo, na qual
estivessem presentes possibilidades diferentes de perceber o mundo, os objetos e as
pessoas. É a realidade do corpo que nos permite imaginar, sonhar, desejar, pensar,
narrar, conhecer, escolher.”
Nesta trilha o corpo é muito mais que a justaposição de óros e o ato de perceber
ganha novas dimensões e a significação do mundo parte do corpo e não da ordem de
conceitos. “A percepção está relacionada ao movimento, à atitude corporal.
(NÓBREGA, 2010, p. 70).
Outro argumento que podemos indicar para a importância da reflexão sobre o
tema Corporeidade na relação com a Motricidade, especialmente relevante para os dias
atuais em nossas relações sociais, pode ser encontrado em Le Breton (2013, p. 129):
Superequipados com meios que lhe permitem comunicar-se sem precisar
deslocar-se (telefone, celular, e-mail, internet etc.) o indivíduo não precisa
mais, necessariamente, se encontrar fisicamente com outros; a conversa
frente a frente durante um passeio tranquilo ou em um lugar silencioso parece
hoje perder espaço diante do diálogo apaixonado do proprietário de um
celular ou computador com seus interlocutores invisíveis e falantes. As
incontáveis conversas virtuais, frágeis e emeras, são hoje sintomas das
carências do vínculo social, indicam uma sede de contato e, ao mesmo
tempo, uma preocupação de preservar-se, de não se comprometer demais.
Reflexões e produção de conhecimentos sobre Corporeidade colaboram para o
esforço de compreender corpo não apenas algo acessório do processo educacional e das
propostas pedagicas no interior da escola, condição esta ainda predominante em
nossos bancos escolares.
Toda essa relão Motricidade e Corporeidade torna-se importante se
considerarmos que a percepção emerge da Motricidade assim como a cognição emerge
da Corporeidade (NÓBREGA, 2016).
Toda a argumentação até aqui desenvolvida justifica o indicado inicialmente, que
Corporeidade, sob a perspectiva dos pressupostos epistemológicos da fenomenologia,
o é apenas um conceito e sim uma atitude calcada na existencialidade do sujeito.
Afinal, Merleau-Ponty (2011, p. 14) afirmava: O mundo é não aquilo que eu penso,
mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com
ele, mas não o possuo, ele é inesgotável”.
Corpo, Corporeidade, Motricidade, movimento ganharam novas dimensões a
partir de Merleau-Ponty, inclusive porque esse pensador também associa tais termos
como consciência, vivência e mundo (MOREIRA, 2019).
Ainda nesta trilha, Corporeidade pode permitir que interpretemos o mundo mais
do que o expliquemos, permite pensar o outro e a si mesmo a partir da signifincia
dessa relação.
Trabalhar o tema Corporeidade em cursos de graduação, por exemplo, pode
propiciar o entendimento de que:
[...] a corporeidade é, existe e possui, através da cultura, significado. Daí a
constatação de que a relação corpo-educação, por meio da aprendizagem,
significa aprendizagem da cultura dando ênfase aos sentidos dos
acontecimentos -,e aprendizagem da história enfatizando aqui a relevância
das ações humanas. Corpo que se educa é corpo humano que aprende a fazer
história e cultura (MOREIRA, 2012, p. 135).
173
Motricidade, Corporeidade e Complexidade
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 3, n. 3, p. 167-176, set.-dez. 2019 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463.2019.v3.n3.p167-176
Adentrando ao espaço escolar, percebemos a evolução tecnológica presente nas
salas de aula. Alguns exemplos dessa afirmação:
Quadro 1: Evolução tecnológica na escola.
Recursos Didáticos
Primeira Metade
do Século XX
Segunda Metade
do Século XX
Século XXI
Áudio Visuais
Quadro de Giz
Quadro de Giz
Retroprojetor
Projetor de Slides
Quadro Branco
Data Show
Internet
Caneta do Aluno
Caneta de Pena e
Tinteiro na Carteira
Caneta Bic várias cores
Caneta Bic
Celulares
Fontes de Consulta
Tesouro da Juventude e
Enciclopédias
Livros do Professor
Caderno do Aluno
Padronizado
Google com Material
Online
CORPO DO ALUNO
Quietos em colunas
Quietos em colunas
Quietos em colunas
Fonte: os autores, 2019.
Como nesta simples demonstração, constata-se que no interior da escola o trato
com o corpo do aluno o evoluiu, havendo a manutenção de uma educação centrada na
disciplina corporal. Claro está que o paradigma cartesiano de uma educação intelectiva
e não de corpo inteiro ainda está hegemônico.
Ao nos aprofundarmos ainda nos escritos de Merleau-Ponty constatamos que sua
previsão de superação do paradigma cartesiano, feita na primeira metade do século
passado, ainda não se encontra presente na formação profissional dos graduados em
cursos de licenciatura em geral, inclusive na Educaçãosica (MOREIRA, 2019).
Nosso século apagou a linha divisória entre o “corpo” e o “espírito” e a
vida humana como espiritual e corporal de parte a parte, sempre apoiada no
corpo sempre associada, até nos seus modos mais carnais, às relações das
pessoas. Para muitos pensadores, no fim do século XIX, o corpo era um
pedaço de matéria, um feixe de mecanismos. O século XX restaurou e
aprofundou a noção de carne, ou seja, de corpo animado (MERLEAU-
PONTY, 1991, p. 256).
Professores de forma geral, e em especial os da Educação Física, necessitam
redimensionar o trato do corpo de seus alunos. Corpo não é uma coisa” a ser
manipulada e seus movimentos não devem ser interpretados apenas com o princípio
mecânico. O corpo que se move é o mesmo, por exemplo, que se apaixona e movimento
e paixão também estão presentes no sentido da Corporeidade e da Motricidade
(MOREIRA et al., 2008).
Pior ainda a situação hoje encontrada em muitas escolas, nas quais a vigilância
corporal está explícita, inclusive no interior das salas de aula, controlando movimentos
de alunos e professores.
O corpo nos momentos atuais passou a ser fortemente vigiado, inclusive nas
preocupações, como por exemplo, com a qualidade de vida. “A retórica contemporânea
da saúde e do corpo saudável fundam-se num princípio articulado de vigilância e
controle, diagnóstico e terapia.” Diz mais Silva (2008, p. 114): “Vigilância bioquímica e
imagética versus controle terapêutico.
Motricidade e Corporeidade são, assim, temas indispensáveis a serem trabalhados
enquanto conhecimento nas áreas pedagógicas e nos cursos de licenciatura de forma
geral.
174
Wagner Wey Moreira; Marcus Vinicius Simões de Campos; Regina Simões
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 3, n. 3, p. 167-176, set.-dez. 2019 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463.2019.v3.n3.p167-176
TEORIA DA COMPLEXIDADE COLABORANDO COM A INTERCULTURALIDADE
O conhecimento deve saber contextualizar, globalizar, multi-
dimensionalizar, ou seja, ser complexo. É preciso inserir os
conhecimentos parciais e locais no complexo e no global, sem
esquecer as ações do global sobre o parcial e local.
(Edgar Morin)
Neste momento do escrito vamos tangenciar o tema interculturalidade com a
teoria da Complexidade estruturada por Edgar Morin, procurando nessa tarefa
identificar relações com Motricidade e Corporeidade. E é aqui também a necessidade de
realçar o contexto do hemisfério sul, afinal a quase totalidade dos países que proferem
sua fala e sua escrita em língua portuguesa estão aqui localizados.
Afinal, em quais países ou regiões administrativas nosso idioma se acha presente?
Neste item estamos bem representados através de: Angola / Brasil / Cabo Verde / Guiné
Bissau / Guiné Equatorial / Macau / Moçambique / Portugal / São Tomé e Príncipe /
Timor-Leste.
Daí uma primeira constatação. Aglutinar pesquisa na perspectiva de
internacionalização, via de regra, a referência nos países do hemisfério sul é juntar
conhecimentos com países do hemisfério norte. Dificilmente temos grandes relações no
sentido sul/sul. É necessário superar esta história acadêmica de dependência do
conhecimento dos países do norte.
Identificada a rego geográfica, vamos a outro princípio norteador: qual o sentido
educacional balizador do nosso trabalho acadêmico? Aqui entra o pensamento de Morin
(2000) com sua Teoria da Complexidade, a partir da qual podemos estabelecer diretrizes
para o diálogo sul/sul, sempre buscando respeitar as especificidades, mas caminhando
para encontrar elementos que nos unem. Necessitamos aprender a ser, a conhecer, a
fazer e a viver juntos, estabelecendo políticas educacionais significativas para nossos
países.
Um primeiro princípio a ser seguido na trilha da interculturalidade pode ser
encontrado no que Morin (2000, p. 15) denomina de ensinar a condição humana.
O ser humano é a um tempo físico, biológico, psíquico, cultural, social,
histórico. Esta unidade complexa da natureza humana é totalmente
desintegrada na educação por meio das disciplinas, tendo-se tornado
impossível aprender o que significa ser humano. É preciso restaurá-la, de
modo que cada um, onde quer que se encontre, tome conhecimento e
consciência, ao mesmo tempo, de sua identidade complexa e de sua
identidade comum a todos os seres humanos.
Reconhecer a condição humana dos habitantes do hemisfério sul é estar em
sintonia com as diferenças, mas estas de maneira nenhuma deve impedir a busca de
nossa unidade. “A compreensão mútua entre os seres humanos, quer próximos, quer
estranhos, é daqui para frente vital para que as relações humanas saiam de seu estado
rbaro de incompreensão.(MORIN, 2000, p. 17).
de se caminhar no que Morin (2013, p. 57) indica na direção de uma política
da humanidade e para isto é necessário reconhecer as diversidades culturais e nacionais.
Precisamos nos ater à [...] preocupação de salvaguardar indissoluvelmente a
UNIDADE/DIVERSIDADE humana: o tesouro da unidade humana é a diversidade
humana, o tesouro da diversidade humana é a unidade humana”.
175
Motricidade, Corporeidade e Complexidade
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 3, n. 3, p. 167-176, set.-dez. 2019 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463.2019.v3.n3.p167-176
Pleitear a interculturalidade de nossos povos demanda o entendimento de
desenvolvimento para além da diretriz econômica. Mais uma vez recorrendo a Morin
(2013, p. 59), necessitamos de uma potica da humanidade e esta:
[...] deverá deixar em segundo plano o elemento negativo, que hoje ocupa o
primeiro plano, ou seja, a hegemonia do lucro, a redução política à economia,
a redução do conhecimento ao cálculo (que ignora a multidimensionalidade
da existência humana), o domínio da racionalização (que descarta tudo o que
escapa à sua lógica fechada) [...] Por isso mesmo, a política da humanidade
implica o respeito aos saberes, aos fazeres, às artes de viver das diversas
culturas, inclusive as orais.
Estamos dispostos a isto nas nossas relações culturais, educacionais e acadêmicas
no espaço geográfico sul/sul? Se houver essa vontade, muito pode ser feito no propósito
da interculturalidade.
Para tanto há que se estabelecer uma educação centrada na aprendizagem humana
e humanizante, por isso mesmo significativa, alcançada se considerarmos educação
como aprendizagem da cultura (REZENDE, 1990).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Associar os temas Motricidade, Corporeidade e Complexidade buscando refletir
sobre interculturalidade no espaço geográfico do hemisfério sul, é missão possível a
partir de um novo olhar para a educação, buscando superar o paradigma tradicional que
trata corpo como objeto e de forma mecânica.
Pelo exposto ao longo de nossa argumentação, tais temas poderão ser
integrados a partir de uma mudança paradigmática e não apenas com alterações
programáticas, daí a importância do estudo da Teoria da Complexidade.
Motricidade e Corporeidade exigem que nos dediquemos a estudar a obra de
Morin (2000, p. 106), especialmente nas argumentações ligadas à antropotica para:
[...] alcançar a unidade planetária na diversidade; respeitar no outro, ao mesmo tempo,
a diferença e a identidade quanto a si mesmo; desenvolver a ética da solidariedade;
desenvolver a ética da compreensão; ensinar a ética do gênero humano”.
Eis a missão que nos move a caminhar.
REFERÊNCIAS
FREIRE, J. B. Um mundo melhor, uma outra educação física. In: RODRIGUES, D. (Org.). Os valores e
as atividades corporais. São Paulo: Summus, 2008. p. 51-74.
GALLO, S.; ZEPPINI, P. S. “O que pode um corpo?”: perspectivas filosóficas para a corporeidade. In:
MOREIRA, W. W; NISTA-PICCOLO, V. L. (Orgs.). Educação física e esportes no século XXI.
Campinas: Papirus, 2016. p. 107-131.
INFORSATO, E. C. A educação entre o controle e a libertação do corpo. In: MOREIRA, W. W. (Org.).
Século XXI: a era do corpo ativo. Campinas: Papirus, 2006. p. 91-108.
KUNZ, E.; MARQUES, D. A. P. A educação física vista pela fenomenologia. In: NÓBREGA, T. P.;
CAMINHA, I. O. (Orgs.). Merleau-Ponty e a educação física. São Paulo: Liber Ars, 2019. p. 39-55.
LE BRETON, D. Adeus ao corpo. In: NOVAES, A. (Org.). O homem-máquina: a ciência manipula o
corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 123-137.
176
Wagner Wey Moreira; Marcus Vinicius Simões de Campos; Regina Simões
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 3, n. 3, p. 167-176, set.-dez. 2019 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463.2019.v3.n3.p167-176
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
MERLEAU-PONTY, M. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
MOREIRA, W. W. Formação profissional em ciência do esporte: homo sportivus e humanismo. In:
BENTO, J. O.; MOREIRA, W. W. Homo sportivus: o humano no homem. Belo Horizonte: Instituto Casa
da Educação Física, 2012. p. 112-180.
MOREIRA, W. W. Merleau-Ponty na sala de aula e na beira do campo: contribuições para a área da
educação física / esportes. In: NÓBREGA, T. P.; CAMINHA, I. O. Merleau-Ponty e a educação física.
São Paulo: LiberArs, 2019, p. 21-38.
MOREIRA, W. W.; PORTO, E. R. T.; CARBINATTO, M.; SIMÕES, R. Do corpo à corporeidade: a arte
de viver o movimento no esporte. In: RODRIGUES, D. (Org.). Os valores e as atividades corporais.
São Paulo: Summus, 2008. p. 127-146.
MOREIRA, W. W.; SIMÕES, R. Esporte e humanismo. In: SILVA, J. V. P.; MOREIRA, W. W. (Orgs.).
Lazer e esporte no século XXI: novidades no horizonte. Curitiba: InterSaberes, 2018. p. 161-177.
MOREIRA, W. W.; SIMÕES, R. Educação física, esportes e corporeidade: associação indispensável. In:
MOREIRA, W. W.; NISTA-PICCOLO, V. L. (Orgs.). Educação sica e esportes no século XXI.
Campinas: Papirus, 2016. p. 133-149.
MORIN, E. A via para o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013.
MORIN, E.. Os sete saberes necessários para a educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília:
Unesco, 2000.
NÓBREGA, T. P. Corporeidades...: inspirações merleau-pontianas. Natal: Editora do IFRN, 2016.
NÓBREGA, T. P. Uma fenomenologia do corpo. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2010.
REZENDE, A. M. Concepção fenomenológica da educação. São Paulo: Cortez / Autores Associados,
1990.
SERGIO, M. Epistemologia da motricidade humana. Lisboa: Faculdade de Motricidade Humana,
1996.
SILVA, P. S. Corpo, vigilância, controle. In RODRIGUES, D. (Org.). Os valores e as atividades
corporais. São Paulo: Summus, 2008. p. 113-126.
TRIGO, E. Creatividad y motricidade. Barcelona: Inde Publicaciones, 1999.
TROVÃO DO ROSÁRIO, A. A motricidade humana e a educação. In: SERGIO, M. (Org.). O sentido e
a acção. Lisboa: Instituto Piaget, 2008. p. 31-60.
______
Recebido em: 31 out. 2019.
Aprovado em: 05 dez. 2019.