v. 5, n. 1, p. 55-64, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 |
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Resistência e coexisncia:
da produção de mercadorias à valorização da vida
Resistance and coexistence: from the production of goods to the revolution of life
Resistencia y coexistencia: desde la producción de mercaderías hasta la valoración de la vida
ANDRÉIA CORDEIRO MECCA
1
; MIRIÃ MARTINS DE BRITO
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS, UFSCAR, SÃO CARLOS-SP, BRASIL
RESUMO
O objetivo central deste ensaio foi discutir a diferença entre uma sociedade pautada na produção de mercadorias,
que nega a fruição do ócio a favor do capital, e sociedades indígenas ameríndias, que valorizam a vida humana e
dos demais seres. As raízes históricas do capitalismo foram base para reflexão de como a exploração do trabalho
humano tornou-se o centro da busca por acumulação de riquezas. Depois abordamos visões de sociedades
indígenas ameríndias que, desde uma filosofia ancestral em sintonia com a existência e a coexistência, respeitam
a outrem e a Terra. Consideramos, com base na literatura escrita por indígenas, bem como de autores/as
alinhados/as a referenciais suleados, a possibilidade de outro mundo possível, especialmente observando a
filosofia do Bem-Viver, que aponta para a construção coletiva e harmônica de novas formas de viver, que
valorizam e respeitam a diversidade, a natureza, a vida na Terra e da Terra.
Palavras-chave: Bem-Viver. Ócio. Trabalho.
ABSTRACT
The purpose of this essay was to discuss the difference between a society based on the production of goods,
which denies the enjoyment of leisure in favor of capital, and Amerindian indigenous societies, which value
human life and that of other beings. The history of capitalism is the basis for reflecting on how the exploitation
of human labor results in the accumulation of wealth. Then, we approach visions of indigenous Amerindian
societies whose existence and coexistence respect each other and the Earth. We consider, based on the literature
written by indigenous people, as well as authors aligned with southern references, another possible world,
especially observing the philosophy of Good-Living and new ways of living, which value and respect diversity,
nature, life on Earth and Earth.
Keywords: Good-Living. Idleness. Job.
RESUMEN
El objetivo principal de este ensayo fue discutir la diferencia entre una sociedad basada en la producción de
mercaderías, que niega el disfrute del ocio a favor del capital, y las sociedades indígenas amerindias, que valoran
la vida humana y la de otros seres. Las raíces históricas del capitalismo fueron la base para reflexionar sobre
mo la explotación del trabajo humano se convirtió en el centro de la búsqueda de la acumulación de riquezas.
Después nos acercamos a visiones de sociedades indígenas amerindias que, desde una filosofía ancestral en
sintonía con la existencia y la coexistencia, respetan a otren y a la Tierra. Consideramos, a partir de la literatura
escrita por indígenas, así como de autores/as alineados con referenciales sureñados, la posibilidad de otro mundo
posible, especialmente observando la filosofía del Buen-Vivir, que apunta a la construcción colectiva y armónica
de nuevas formas de vivir, que valoran y respetan la diversidad, la naturaleza, la vida en la Tierra y en la Tierra.
Palabras clave: Buen-Vivir. Ocio. Trabajo.
1
Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar. E-mail:
andreia.mecca@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-5703-4656.
2
Mestre em Educação pelo Programa de s-Graduação em Educação da UFSCar. E-mail:
mihmartins23@hotmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8031-9705.
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TRABALHO COMO PROPOSTA DA SOCIEDADE CAPITALISTA
A revolão francesa de 1789 marcou, na história ocidental, o fim do feudalismo
e início do sistema econômico burguês, o capitalismo. Porém, a transição entre esses
dois sistemas é mais longa e ocorreu no decorrer de séculos, antes e depois desse marco.
Também é preciso salientar que em muitas comunidades, na maioria originárias, o
capitalismo não foi implementado, ainda que existam relações sociais e econômicas em
alguns casos.
No sistema capitalista, a manufatura foi substitda pela máquina a vapor e depois
pela eletricidade. Nesse processo, a relação entre empregador/e trabalhador/a
modificou-se, ocorrendo intensa divisão do trabalho. Sendo assim, cada trabalhador/a
assumiu um posto dentro do processo produtivo, ou seja, uma tarefa específica regida
pelo tempo da quina. Também se aprofundou a separação entre capitalista e
trabalhador/a, cuja relação se deu em grande medida por aspectos econômicos, isto é,
pela compra e venda da mão-de-obra. Outra importante característica é a produção em
grandes escalas e no menor tempo possível. Segundo Marx (2010):
Não é por o trabalho se tornar mais intenso ou por se prolongar a duração do
processo de trabalho; nem é por o trabalho ganhar maior continuidade e, sob
o olhar interessado do capitalista, mais ordem, etc., que se altera em si e para
si o caráter do processo real do trabalho, do modo real do trabalho. Surge
nisto, pois, um grande contraste com o modo de produção especificamente
capitalista (trabalho em grande escala, etc., que, como indicamos, se
desenvolve no decurso da produção capitalista e revoluciona não as
relações entre os diversos agentes da produção, mas também
simultaneamente o caráter desse trabalho e a modalidade real do trabalho no
seu conjunto [...] (p. 89).
Para aumentar a escala, foi necessário primeiro conquistar novos mercados e
depois subtrair a demanda da produção. Os produtos, que antes eram feitos sob procura,
passaram a ser fabricados continuamente, transmutando a centralidade da produção, que
residia na necessidade do/a consumidor/a, para a mercadoria em si mesma. Portanto, a
busca por novos mercados, em expansão com as grandes navegações, foi fundamental
para o avanço desse sistema. De acordo com Marx e Engel (2007):
A manufatura e, em geral, o movimento da produção experimentaram um
enorme impulso graças à expansão do comércio ocorrida com a descoberta
[invasão] da América e da rota marítima às Índias Orientais. [...] enquanto as
expedições de aventureiros, a colonização e sobretudo a expansão dos
mercados até a formação de um mercado mundial - expansão que, então, se
torna possível e realiza-se cada vez mais, dia após dia - despertam uma nova
fase do desenvolvimento histórico [...]. Mediante a colonização dos países
recém-descobertos [invadidos], a luta comercial entre as nações ganhou novo
alinhamento e, nessa medida, uma extensão e uma animosidade maiores (p.
57).
A produção contínua e a inexistência de leis de proteção aos/às trabalhadores/as,
tornou comum jornadas de trabalho de 12h a 17h horas, executadas tanto por adultos,
quanto por crianças. Em alguns lugares, a jornada era tão extensa que as pessoas
paravam apenas para dormir, o que poderia ocorrer na própria fábrica; também alguns
padeciam em frente à quina. Lafargue (1999) conta o caso da cidade de Mullhouse,
no ano de 1838, onde trabalhadores/as moravam em habitações miseráveis, a milhas de
distância do trabalho, com jornadas de 17h e com período de alimentação de apenas
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1h30min. A redução da jornada e as leis de proteção aos/às trabalhadores/as foram
implementadas depois de séculos de lutas.
No capitalismo os burgueses detêm todos os meios de produção e os
trabalhadores/as apenas sua própria capacidade de trabalho. Privados dos meios de
produção, os/as operários/as também ficam privados/as dos meios de subsistência, o que
os obriga à subordinação. A força de trabalho é, portanto, trocada por um salário, que
muitas vezes compra exclusivamente a subsistência necessária para continuar
trabalhando, como a energia que alimenta a máquina no processo produtivo.
Entretanto, essa troca é desigual, ou seja, o salário não representa o valor
produzido pela força de trabalho, mas sim um valor menor (MARX, 2010). O
prolongamento da utilização da força de trabalho para além do valor pago ao
trabalhador/a é o que Marx (2010) chamou de mais-valia. Esse trabalho não pago, a
mais-valia, é utilizada para saldar os custos da fábrica e gerar o lucro para o capitalista.
Caso o/a trabalhador/a produzisse apenas o valor de seu salário, não haveria exploração
nesse sistema. De acordo com Marx (2010):
[...] o dinheiro o pode transmutar-se em capital se não for trocado por
capacidade de trabalho, enquanto mercadoria vendida pelo próprio operário.
[...] De modo que o trabalho assalariado constitui uma condição necessária
para a transformação de capital e se mantém como premissa necessária e
permanente da produção capitalista (p.72-73).
A mais-valia pode ser adquirida de duas maneiras, prolongando a jornada e
aumentando a intensidade da produção. O objetivo é que as mercadorias contenham o
máximo possível de trabalho não pago e quanto mais mercadorias são produzidas, maior
a mais-valia. Todavia, a realização desse valor ocorre no momento em que o produto
é vendido, exatamente por isso: [...] não são as necessidades existentes que determinam
o nível da produção, mas de que é a escala de produção - sempre crescente e imposta,
por sua vez pelo próprio modo de produção - que determina a massa do produto
(MARX, 2010, p. 107-108).
No exageramos al afirmar que «[...] sin medias palabras, el capitalismo es un
sistema de parsitos» (Bauman, 2010, p. 8), que focaliza su fuerza en el
ingenio extraordinario y que busca, a travs de la figura de las empresas,
nuevos recursos cuando los anteriormente explorados se vuelven escasos, se
agotan o se extinguen; y, tambin, en la fuerza del oportunismo y la rapidez
dignos de un virus con la que se adapta a las nuevas condiciones y a la nueva
realidad, calificada por el autor como nuevos pastos (LEMOS;
GONÇALVES-JUNIOR; RODRIGUEZ-FERNÁNDEZ, 2020, p. 733).
A lógica ocidental dominante faz com que as pessoas acreditem que o nosso
objetivo nesse mundo é trabalhar e produzir. Por causa dessa crença, estamos destruindo
o planeta que vivemos, ampliando as desigualdades e nos tornando infelizes. Lafargue
(1999) alertou: Trabalhem, trabalhem, proletários, para aumentar a riqueza social e
suas misérias individuais; trabalhem, trabalhem para que, ficando mais pobres, tenham
mais razões para trabalhar e tornarem-se miseráveis (p. 79).
Mulheres e homens, imersos nessa condição alienada do processo produtivo,
fazem do trabalho o seu meio de vida, a própria crença em dias melhores, submetendo-
se a essa lógica exploratória. Como alternativa à ideologia dominante, Lafargue (1999)
vislumbra a possibilidade de retomada do ócio. Para isso seria necessário cessar a mais-
valia e estabelecer jornadas curtas, cujo salário seria equivalente ao valor produzido.
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Dessa forma, as pessoas teriam tempo livre para se dedicar a outras atividades não
produtivas.
Trabalho vem do Latim, Tripalium, que significa instrumento de tortura usado
contra escravos e pobres, enquanto ócio veio do Latim otium, inatividade. Negócio,
palavra comumente usada no capitalismo, significa a negação do ócio (CHAUÍ, 1999).
O ócio, valorizado nas antigas sociedades gregas e romanas, e trabalho, que era
executado somente por escravos e, portanto, motivo de desonra, tiveram seus
significados invertidos na sociedade capitalista.
Antes as atividades artesanais eram, em muitos casos, realizadas na própria
residência das pessoas, onde o tempo livre e o trabalhado não eram bem definidos, o
que possibilitava a vivência do ócio e autonomia na administração do tempo. Com a
chegada da instria, o trabalho passa a ser realizado em local determinado, regido pelo
ritmo da máquina. Como esse tempo é bem delimitado e pré-estabelecido, o ócio passou
a ser negado, compreendido como sinimo de preguiça e falta de vontade, muitas
vezes inaceitável na vida adulta (GONÇALVES-JUNIOR; CORRÊA; RODRIGUEZ-
FERNÁNDEZ, 2018).
As, el capitalismo incentiva solamente las actividades de la Industria del
Ocio, involucradas con el propsito de controlar tanto el tiempo libre de las
personas como la produccin y consumo a gran escala de productos
ideolgicamente estimulados para las personas a travs de una extraordinaria
publicidad meditica y calificados como indispensables: la televisin tctil de
ltima generacin para la prctica y visionado de juegos deportivos; el viaje
en paquete de «todo incluido» a modernos complejos tursticos; la
adquisicin de un novedoso aparato de musculacin para la prctica de
ejercicios fsicos; la ropa con tejido transpirable para atletismo; o los
videojuegos o los paseos por un centro comercial, entre otros
(GONÇALVES-JUNIOR; CORRÊA; RODRIGUEZ-FERNÁNDEZ, 2018,
p.129).
De acordo com Lafargue (1999), para romper com a lógica vigente seria
necessário abrir caminhos para os pecados do ócio, pondo fim a esse sistema de
exploração do trabalho. As bênçãos da preguiça são o gozo de uma vida boa, com
tempo para o estudo e para as profundas reflexões acerca da cultura, da potica, das
ciências, das artes, de maneira que se possa fluir nas virtudes que fortalecem o espírito.
O ócio, portanto, seria o meio de lutar contra os privilégios de alguns pela [...]
apropriação da riqueza social e contra a barbárie contemporânea por que podem
conhecê-la por dentro e aboli-la. Lutarão, não mais pelo direito ao trabalho, e sim pela
distribuição social da riqueza e pelo direito de fruir de todos os seus bens e prazeres
(CHAUÍ, 1999, p. 56). A divisão social do trabalho realizada a partir da compreensão
do valor do/a trabalhador/a, de acordo com Lafargue (1999), e de seu justo pagamento,
possibilitaria a construção de uma sociedade mais justa e solidária. De acordo com
Lemos, Gonçalves-Junior e Rodriguez-Fernández (2020):
Apreciar el mundo del ocio y del ldico (retomando el canto, danza, juego y
fiesta) puede estimular en las personas la necesidad de estrechar relaciones y
practicar la solidaridad, la convivencia, la coexistencia, la corresponsabilidad
y por el proyecto colectivo de vivir bonito de los pueblos del sur (p. 734).
O trabalho representaria o controle das forças da natureza para a satisfação de
necessidades reais e também como forma de exteriorizar a capacidade humana, através
de expressão criadora e inventiva (CHAUÍ, 1999). A atuação no mundo poderia ser
construída com engajamento, tanto nas relações econômicas e políticas, quanto nas
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sociais e culturais. O trabalho realizado dessa forma seria prazeroso e implicaria no
Bem-Viver de uma sociedade pautada por cidaos e cidadãs livres da exploração que
Lafargue (1999) chamou de trabalho assalariado.
O BEM-VIVER COMO PROPOSTA ALTERNATIVA À SOCIEDADE CAPITALISTA
A partir da análise dos/as autores/as acerca da estrutura da sociedade que estamos
inseridos, compreendendo as raízes que sustentam a lógica capitalista e a relação de
exploração do trabalho, apontamos para a centralidade que a acumulação de bens e
riquezas ocupou em nossa sociedade. Até aqui, os anúncios apresentados por meio de
Lafargue (1999), Chauí (1999), Lemos, Gonçalves-Junior e Rodriguez-Fernández
(2020) e Gonçalves-Junior, Corrêa e Rodriguez-Fernández (2020) trouxeram
alternativas para outro mundo possível, a partir de vivências imersas no capitalismo.
Todavia, outras cosmovisões coexistem nesse tempo e espaço e, desde a
ancestralidade, constituem diferentes formas de viver e agir, por meio do respeito às
diversas vidas e ao planeta. Essas cosmovisões podem nos trazer vivências distintas,
bem como anunciar outros mundos possíveis, para além do que estamos pautando como
alternativa. São sociedades que mantêm relações conscientes com o sistema capitalista e
que podem contribuir com formas de luta e resistência.
As populações originárias da América Latina somam séculos de resistência ao
genodio, que continua ocorrendo de diversas formas, inclusive, por meio do Estado.
Muitos embates foram travados com o intuito de dizimar esses povos e outros tantos os
quiseram catequizar, negar e invisibilizar seus costumes, tradições, línguas, modos de
ser e estar no mundo, ou seja, [...] transform-los em civilizados que poderiam integrar
o clube da humanidade (KRENAK, 2020, p. 14). Ainda hoje a resistência perpassa o
existir, a visibilidade, a afirmação da presença:
Eu falei: ‘Tem quinhentos anos que os ndios esto resistindo, eu estou
preocupado com os brancos, como que vo fazer para escapar dessa’. A
gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, no aceitando essa ideia de
que ns somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que
querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150
lnguas e dialetos (KRENAK, 2019, p. 15).
Krenak (2020) alerta para a compreensão do real sentido do que é ser humano. A
ideia naturalizada de que somos pertencentes a um clube chamado de humanidade, nos
coloca sob as mesmas regras ideológicas e sociais. A concepção de humanidade exclui
70% das pessoas, aliena os/as humanos/as da natureza, invisibilizando a diversidade de
raízes, costumes, tradições e nguas. Nas palavras de Krenak (2020):
Esse pacote chamado de humanidade vai sendo descolado de maneira
absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração
civilizatória, que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de
vida, de existência e de hábitos. [...] Fomos muito tempo embalados nessa
história de que somos a humanidade e nos alienamos desse organismo de que
somos parte, a Terra, passando a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a
Terra e a humanidade (p. 7-8).
A humanidade, consubstanciada na globalização e nas práticas de grandes
multinacionais, também recria espaços ao redor do planeta. Cidades como São Paulo,
Nova York ou Paris são bem parecidas e contêm as mesmas gamas de produtos
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capitalistas. Nessas cidades verticais, com túneis de metrô, rios canalizados,
impermeabilização do solo, entre outros aspectos, fica quase impossível tocar os pés na
terra. As cidades de pedra afastam a natureza viva dos arredores: animais, ssaros,
árvores e plantas, que ficam também privados das formas originais de vida. Por esse e
outros motivos é que os humanos estão segregados da natureza e a vislumbram como
algo distante e inanimado. De acordo com Kopenawa e Albert (2019):
Nessa cidade de Paris, multides de carros e nibus corriam o dia todo,
fazendo um barulho ensurdecedor, apertados no meio das casas. A terra de l
toda escavada de tneis sem fim, como se fossem de grandes minhocas.
Longos trens de metal no paravam de andar por eles com grande estrondo,
deslizando em barras de ferro h muito arrancadas das profundezas do cho.
tambm por isso que me parecia que o cho tremia o tempo todo, mesmo
durante a noite. Para quem sempre dormiu no silncio da floresta, essas
vibraes so muito inquietantes. Os brancos no parecem perceb-las,
porque esto acostumados a nunca deixar sua terra em paz. Mas eu no
parava de pensar que ela devia virar outra por causa do barulho e da agitao
que a maltratavam sem trgua. Por isso virei fantasma tantas vezes durante
aquela viagem! (p. 423).
Um dos grandes desafios é superar a lógica do consumismo e do produtivismo,
que usurpa da natureza e explora a força de trabalho de mulheres e homens. A
concepção de apropriação, acumulação e de posse dos bens, isto é, das coisas são as
bases do sistema capitalista, acerca disso, Tabajara (2018a) escreve: [...] e assim pude
perceber, tudo aqui tem um padrão: Quem tem grana é patrão; o ter é mais que o ser (p.
32). Diferente dessa concepção, para povos originários o que existe é uma relação de
desapego das mercadorias, atribuindo valor a partir da utilidade e do compartilhamento,
Tabajara (2018b) escreve: [...] na aldeia tudo é arte, tudo também se reparte (p. 65).
Segundo Kopenawa e Albert (2019):
Esse o nosso costume, tanto com os objetos que fabricamos como com as
mercadorias que nos vm dos brancos. [...] Nenhum de ns deseja suas
mercadorias s para empilh-las em casa e v-las ficando velhas e
empoeiradas! Ao contrrio, no paramos de troc-las entre ns, para que
nunca se detenham em suas jornadas. So os brancos que so sovinas e fazem
as pessoas sofrerem no trabalho para estender suas cidades e juntar
mercadorias, no ns! Para eles, essas coisas so mesmo como namoradas!
Seu pensamento est to preso a elas que se as estragam quando ainda so
novas ficam com raiva a ponto de chorar! So de fato apaixonados por elas!
[...]. Ns no somos como eles. Mais do que nos objetos que queremos
possuir,  nos xapiri [espritos] que nosso pensamento fica concentrado, pois
s eles so capazes de proteger nossa terra e de afastar para longe de ns tudo
o que perigoso. Se os brancos pudessem, como ns, escutar outras palavras
que no as da mercadoria, saberiam ser generosos e seriam menos hostis
conosco. Tambm no teriam tanta gana de comer nossa floresta (p. 413-
414).
Acosta (2016) nos traz outros mundos possíveis a partir da concepção do Bem-
Viver, ou seja, da busca por alternativas para construção coletiva de novas formas de
viver, que não ignoram a diversidade e respeitam todos os seres vivos. Outro mundo é
possível se for pensado e organizado em conjunto, considerando os Direitos Humanos e
os Direitos da Natureza, bem como construindo relações respeitosas e conscientes nos
âmbitos políticos, econômicos, culturais e ambientais. De acordo com Brandão (2005):
[...] podemos aprender a nos constituir, livres de toda coerção e de toda propaganda
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criadora de falsos desejos, falsos direitos e falsos deveres, como critérios do que de fato
necessitamos para viver (p. 67).
Nesse sentido, o Bem-Viver se relaciona com as tradições indígenas, ao mesmo
tempo em que critica os socialismos antropocêntricos e toda forma de autoritarismo. Ao
contrário, busca a transformação a favor de visões sociobiocêntricas, em que o Bem-
Viver e os Direitos da Natureza estão presentes. Para tanto, é necessário a construção de
[...] uma sociedade que entenda que faz parte da Natureza e que deve conviver em
harmonia com ela e dentro dela (ACOSTA, 2016, p. 133). Kambeba (2020)
complementa:
A natureza é mãe e nos alimenta, por isso, por parte das populações
indígenas e dos que vivem às margens dos rios uma preocupação quanto ao
tratamento que se está dando a esse recurso precioso a humanidade. Pensar a
natureza de forma sustentável é uma prática há séculos executada pelos
povos da terra (p. 62).
Conforme Guajajara (2020), é necessário compreendermos que o meio ambiente e
as lutas sociais não são dissociados. As terras indígenas são os territórios mais
preservados do país, porém quem as protegem não o as políticas ambientais, mas sim
os povos que as ocupam. A maneira de viver dos povos indígenas e a forma como se
relacionam com o meio ambiente e com as comunidades tradicionais, garantem a
proteção desses territórios. A autora destaca:
O que a gente faz beneficia todas as pessoas. Não é uma luta de índio, mas
uma luta pelo planeta. É bem importante as pessoas saberem que nós,
indígenas, somos 5% da população mundial e conseguimos proteger com o
nosso modo de vida próprio 82% da biodiversidade que existe ainda viva no
planeta. Por isso a luta tem que ser compreendida e abraçada por todo
mundo, pois, se não biodiversidade, não há vida no planeta [...].
(GUAJAJARA, 2020, n.p.).
Dessa forma, a expressão da presença indígena, em seu modo de viver, pode
contribuir com mudanças no corpo da coletividade, pois nessas visões [...] tudo está em
harmonia com tudo, tudo está em tudo e cada um é responsável por essa harmonia
(MUNDURUKU, 2019, p. 33). Essa forma de viver exe que em diferentes culturas,
todos os seres vivos têm o direito de nascer e vivenciar experiências de vida cada vez
mais livres de controles sociais (PENZANI, 2019).
O Bem Viver, tal qual no conceito em construo apresentado por Alberto
Acosta, refere-se, portanto, vida em pequena escala, sustentvel e
equilibrada, como meio necessrio para garantir uma vida digna para todos e
a prpria sobrevivncia da espcie humana e do planeta. O fundamento so
as relaes de produo autnomas, renovveis e autossuficientes. O Bem
Viver tambm se expressa na articulao poltica da vida, no fortalecimento
de relaes comunitrias e solid- rias, assembleias circulares, espaos
comuns de sociabilizao, parques, jardins e hortas urbanas, cooperativas de
produo e consumo consciente, comrcio justo, trabalho colaborativo e nas
mais diversas formas do viver coletivo, com diversidade e respeito ao
próximo (TURINO, 2016, p. 15-16).
Nessas sociedades a natureza não está a serviço dos/as humanos/as, pois não
dicotomia, somos natureza. Dessa forma, a busca por lucro torna-se insensata, pois se
estamos integrados, a exploração e a destruição dos recursos naturais, empreendidos na
produção permanente de mercadorias, nos atinge na mesma proporção. O respeito à vida
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neste planeta envolve o bem-estar humano, portanto, nosso objetivo não deve ser apenas
o trabalho e a produção de bens.
Neste ponto, é substancial uma diferenciação entre a produção para a criação
de um excedente e a produção voltada ao sustento da vida. Seguindo o
modelo interpretativo sobre a economia doméstica, as sociedades
cultivadoras de floresta valorizam e praticam a segunda forma, em
detrimento da primeira. Seria adequado interpretar como miséria em uma
sociedade a suspensão das atividades produtivas exatamente no ponto em que
a estabilidade social está garantida? (SOUZA, 2002, p. 240).
Dentro dessa visão, a produção tem como objetivo a exclusiva satisfação das
necessidades. Não há um local e um tempo definidos para o trabalho, o que deixa livre a
gestão do ócio. São formas plurais que compreendem que a vida neste planeta é uma
dádiva e deve ser coroada com sabedoria, solidariedade e diversão.
No geral, as sociedades cultivadoras de floresta são voltadas para o ócio,
reservando largo tempo para festejos e repousos; a atividade produtiva é
interrompida constantemente por outras atividades não-produtivas
(cerimônias, diversões, sociabilidade e repouso). O próprio trabalho, como
se viu, possui um sentido também lúdico (SOUZA, 2002, p. 243).
O centro das vivências não é produção ininterrupta de mercadorias a todo custo
(social, cultural, ambiental, entre outros), mas sim os seres-natureza, que con-vivem em
manifestações plurais da vida no planeta. centenas de povos vivos, com narrativas
diversas da sociedade capitalista, o que torna ainda mais necessário ampliar o horizonte
acerca de concepções arraigadas sobre a humanidade, a natureza, o trabalho e o ócio.
ANÚNCIOS PARA UM NOVO MUNDO POSSÍVEL
Compreender a lógica que sustenta a sociedade capitalista leva à afirmação de que
a degradação social e ambiental é estrategicamente mantida através da exploração da
força do trabalho. Lafargue (1999) anuncia que o despertar consciente dos/as
operários/as será possível quando estes, reconhecendo sua força, reivindicarem a
diminuição da jornada de trabalho, construindo um mundo em que trabalhadores/as
gozem dos prazeres do ócio.
No mesmo sentido, Marx e Engels (2010) anunciaram PROLETÁRIOS DE
TODOS OS PAÍSES, UNI-VOS! (p. 68). Os autores o acreditavam que jornadas
menores poderiam melhorar a situação da classe trabalhadora, pois mesmo com
jornadas reduzidas, seria possível manter a exploração. Somente a revolução proletária
traria horizontes de mudanças e transformações. Marx e Engels (2010) propuseram o
fim do capitalismo e a constituição de um novo sistema, o comunismo, do qual não se
detiveram, apenas indicaram.
Para Brandão (2005), os primeiros passos da transformação [...] são tanto de
ordem política, e incidem sobre a estrutura do poder globalizado que nos domina,
quanto de ordem pessoal e interativamente interior. Reflexiva. Uma nova ordem de
trocas entre as pessoas e entre elas e a Vida(BRANDÃO, 2005, p. 67).
Podemos retirar da economia de mercado a nossa procura de soluções, em
direção a uma economia francamente solidária. Não precisamos de tanto; não
precisamos consumir tanto para viver; não precisamos aspirar tantas coisas
para sermos felizes. Precisamos de olhos de os e de ternura; precisamos
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Resistência e coexistência
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 5, n. 1, p. 55-64, jan.-abr. 2021 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2021-v5-n1-p55-64
menos de patrões e de mandatários e precisamos mais de companheiros de
destino (BRANDÃO, 2005, p. 65).
Acosta (2016) considera o Bem-Viver uma estratégia coletiva para um projeto de
vida para todos e todas, com a possibilidade de conceber espaços de poder real, como
efetivos poderes de ação democrática em contexto político, econômico e cultural. A
ideia, conforme o autor, é ir gerando nesses espaços [...] embriões de uma nova
institucionalidade estatal, de uma renovada lógica de mercado e de uma nova
convincia social (ACOSTA, 2016, p. 168).
Para nós, a constituição de outro mundo deve ser assumida por mulheres e
homens em suas relações não apenas com o trabalho, mas com todos os demais seres
vivos. Além de outra economia, serão necessárias práticas distintas do que foram
estruturadas pelo capitalismo, cujas ações levem em consideração todos os aspectos de
uma vida em comunidade, isto é, inclusiva, harmônica e respeitosa. Princípios como
justiça, solidariedade e equidade devem guiar essa nova maneira de viver.
Dentre tantos desafios, a busca por novas formas de viver, consiste em se
posicionar criticamente diante do sistema dominante. Portanto, refletir sobre os limites e
incongruências pode contribuir para a realização de um mundo melhor. Por meio dos
diferentes saberes podemos buscar a ampliação de propostas, chegando a novos
horizontes. Nesse sentido, as diversas vozes, como aquelas vindas de povos indígenas e
de tantas outras minorias produzidas por esse sistema, ao gritarem juntas podem criar
propostas inovadoras de ser e estar no mundo.
A busca por essa revolução da vida pode parecer utópica, mas quanto a isso
Brandão (2005) ressalta que é necessário sonhar e ter coragem, sair de uma atitude de
negação da vida para compromisso com ela. Retomar a arte de sonhar é necessário, pois
habitar o sonho é abrir espaço para [...] uma experiência transcendente na qual o casulo
humano implode, se abrindo para outras visões da vida não limitada (KRENAK, 2019,
p. 32). Sendo assim, sonhar é enxergar possibilidades de intervenções na estrutura do
sistema capitalista, como brechas para empreender novos fluxos.
As reflexões até aqui apresentadas nos provocam a refletir acerca das mudanças
que queremos em nossa sociedade, para além de denúncias superficiais sobre a estrutura
capitalista. Assim, a resistência está imbricada em ações coletivas e individuais que
abrangem outras formas de viver e que desafiam o sistema vigente ao apresentarem
alternativas de vida. A coexistência dessas possibilidades pode levar à transformação
das relações e à valorização da vida e dos demais seres vivos, isto é, à construção de um
mundo melhor, mais justo, integrado e solidário.
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Recebido em: 30 nov. 2020.
Aprovado em: 16 abr. 2021.