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Josiane Cristina Bocchi; Ariela Cursino Lanfranchi
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 6, n. 1, p. 26-36, jan.-abr. 2022 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2022-v6-n1-p26-36
Como um dos resultados principais deste ensaio, tais processos instituintes,
responsáveis por dar forma e sentido ao vivido da experiência, ficaram bastante
comprometidos pelo corte daquele momento presente, março de 2020. Neste caso, a tragédia e
seus efeitos prologados não foram anunciados e, assim, afetaram a coesão processual dos
tempos vividos (o passado) com a catástrofe (presente).
As medidas sanitárias de controle da propagação do vírus, como anteriormente
citadas, representaram uma drástica e abrupta quebra no nível das relações sociais e afetivas.
Assim, teve início toda uma escalada de transformações em que não se sabia o quão
duradouras seriam. Alguns acreditavam que o estado de pandemia se encerraria em algumas
semanas, talvez dois, três meses. Sabemos que nossa história recente seguiu outra direção,
numa longa e indefinida atmosfera de incertezas, temores e insegurança (física, financeira,
afetiva, existencial). As medidas de restrição de contato social não cessaram de produzir
dilemas éticos, legais e econômicos, os quais afetaram a paisagem social e o nosso imaginário
psíquico, assim como se fizeram, incisiva e penosamente, sentir na saúde do corpo e na saúde
mental. Ora, “[...] as pandemias tendem a ser marcadas por perdas em massa: não somente de
vidas humanas, mas também de rotinas, costumes e regras, obrigando as pessoas a lidarem
com um cenário de imprevisibilidade atípico” (ALVES et al., 2021, p. 1).
Não tardou para que o estado de luto coletivo e as angústias suscitadas pelo
prolongamento do distanciamento social se traduzissem em formas de sofrimento, algumas
com manifestações corporais (crises de ansiedade, ataques de pânico, insônia ao dormir ou ao
acordar, maior consumo de bebidas alcoólicas) e outros sinais preocupantes nem tão fáceis de
identificar, pelo menos não no início de sua evolução, como no sono não reparador,
oscilações do humor, francas reações de desânimo, tristeza, desespero ou raiva. As crianças
foram um caso específico, incialmente muitas pareciam terem se adaptado rápida e
silenciosamente, “de férias” da escola ou em casa com suas famílias. Ao final de 2020, os
consultórios médicos e de psicoterapeutas testemunharam uma outra realidade sobre os
efeitos da pandemia na experiência infantil.
Suspeitamos que, em certo sentido, as crianças e os idosos tenham sido
significativamente afetados pelas consequências psicossociais instituídas pela pandemia,
principalmente, porque são os que foram impactados de modo específico na vivência da
temporalidade, por razões distintas. A Psicologia tem teorias sobre desenvolvimento e ciclo
vital (infância, adolescência, vida adulta, velhice) que facilmente atestariam que a gradação
do tempo é experienciada de forma relativa, conforme o repertório neuroendócrino e psíquico,
bem como as dinâmicas dos papeis sociais e a maior ou menor complexidade das experiências
a serem elaboradas. Os mais velhos têm, via de regra, menos tempo pela frente. Por outro
lado, os anos da infância têm, digamos, uma valoração mais densa, no sentido de comportar
um maior número de transformações (fisiológicas, psicossociais etc.) do que as fases da vida
adulta. O amadurecimento infantil tem janelas específicas para incorporação de aprendizados
e novos sentidos. O grande exemplo é a importância crucial do primeiro ano de vida para a
inserção na linguagem e desenvolvimento neuromotor.
O mais importante é que as pessoas, no geral, se queixavam de alterações na
percepção subjetiva da passagem do tempo: desde a impressão de que o tempo fluía mais
lentamente ou de forma veloz, até estágios de tédio e a apreensão de que o tempo estava se
fechando sobre si mesmas. Chamamos a atenção para as diversas formas de relato sobre
lapsos na captação temporal: a) Estranhamento quanto aos aniversários completados (“Não
parece que se passaram dois anos, um ano”); b) Alterações do sensopercepção, função
psíquica responsável pelo juízo crítico da realidade, com estados de desrealização e
despersonalização
e c) Tornaram-se frequentes frases como “Isso é surreal”, “Ninguém
Respectivamente, sensações alteradas em relação ao reconhecimento do ambiente ao redor e desconforto ou
estranhamento quanto à imagem corporal e no contato e reconhecimento do próprio corpo.