v. 6, n. 1, p. 26-36, jan.-abr. 2022 | ISSN 2594-6463 |
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 6, n. 1, p. 26-36, jan.-abr. 2022 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2022-v6-n1-p26-36
O Ser perspectivo em movimento: angústia e rotinas de práticas
corporais no distanciamento social da pandemia de COVID-19
The perspective being in motion: anguish and routines of body practices in the social distancing of the
COVID-19
El ser perspectivo en movimiento: angustia y rutinas de las prácticas corporales en el distanciamiento social
de la pandemia del COVID-19
JOSIANE CRISTINA BOCCHI
1
; ARIELA CURSINO LANFRANCHI
2
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO, UNESP, BAURU-SP, BRASIL
RESUMO
Este ensaio discute a reconfiguração psicossocial advinda com a imersão dos indivíduos nos espaços de suas
casas, no distanciamento social e enfrentamento da pandemia da COVID-19. Destacamos algumas
consequências de novos engendramentos espaço-temporais para a saúde mental. Esbamos alternativas para os
impasses colocados pela pandemia, através da problematização do papel da síntese do corpo próprio no tempo
presente. Os resultados desta reflexão estão fundamentados no referencial existencial-fenomenológico de
Merleau-Ponty, nas noções de corpo próprio, temporalidade e de instituição. Concluímos que certas práticas
corporais podem oferecer suporte para uma reestruturação simbólica e temporal. Pôr-se em movimento tem
adquirido um papel salutar em meio às mudanças drásticas da subjetividade da nossa época. Mudanças que
instauraram e têm mantido uma atmosfera de crise e de busca por novas perspectivas de ação no mundo pós-
pandemia.
Palavras-chave: Práticas Corporais. Saúde Mental. COVID-19. Temporalidade. Merleau-Ponty.
ABSTRACT
This paper discusses the psychosocial reconfiguration arising from the immersion of individuals in the spaces of
their homes, social distancing and coping with the COVID-19 pandemic. We highlight some consequences of
new spatio-temporal engenders for mental health. We outline alternatives to the impasses posed by the
pandemic, through the questioning of the role of the synthesis of the own body in the present time. The results of
this reflection are based on the existential-phenomenological framework of Merleau-Ponty, on the notions of
ones own body, temporality and institution. We conclude that certain bodily practices can support a symbolic
and temporal restructuring. Putting oneself in motion has acquired a salutary role in the midst of the drastic
changes in the subjectivity of our time. Changes that have established and have maintained an atmosphere of
crisis and the search for new perspectives for action in the post-pandemic world.
Keywords: Body Practices. Mental Health. COVID-19. Temporality. Merleau-Ponty.
RESUMEN
Este ensayo aborda la reconfiguración psicosocial derivada de la inmersión de los individuos en los espacios de
sus hogares, el distanciamiento social y el enfrentamiento a la pandemia de la COVID-19. Destacamos algunas
consecuencias de los nuevos engendros espacio-temporales para la salud mental. Esbozamos alternativas a los
impasses que plantea la pandemia, a través del cuestionamiento del papel de la síntesis del propio cuerpo en el
presente. Los resultados de esta reflexión se basan en el marco existencial-fenomenológico de Merleau-Ponty, en
las nociones de cuerpo propio, temporalidad e institución. Concluimos que ciertas prácticas corporales pueden
sustentar una reestructuración simbólica y temporal. Ponerse en movimiento ha adquirido un rol saludable en
medio de los cambios drásticos en la subjetividad de nuestro tiempo. Transformaciones que han instaurado y
mantenido un ambiente de crisis y de búsqueda de nuevas perspectivas de actuación en el mundo pospandemia.
Palabras clave: Prácticas Corporales. Salud Mental. COVID-19. Temporalidad. Merleau-Ponty.
1
Mestre em Psicologia e Doutora em Filosofia. Professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de
Ciências e do Programa de Pós-Graduação em Educação Sexual da FCLar (Unesp Araraquara). E-mail:
josiane.bocchi@unesp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2657-9490.
2
Mestranda em Psicologia da Aprendizagem e do Desenvolvimento, da Faculdade de Ciências (FC, Unesp
Bauru). E-mail: ariela.lanfranchi@unesp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4683-4348.
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O Ser perspectivo em movimento
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 6, n. 1, p. 26-36, jan.-abr. 2022 | ISSN 2594-6463 |
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INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como finalidade abordar e discutir algumas formas
prevalentes de sofrimento psíquico, relacionadas aos períodos de distanciamento social,
instaurados como medida de prevenção e de enfrentamento da pandemia da COVID-19 no
Brasil. Será dado destaque ao recurso das práticas corporais como forma de alívio da
ansiedade e dos estados de abatimento e desolação, característicos dos momentos depressivos.
Tais estados emocionais se tornaram mais frequentes na vida cotidiana nos anos de 2020 e
2021, nos períodos de maior restrição de circulação das pessoas e reclusão total ou parcial nos
ambientes domésticos, devido à intensificação da transmissibilidade do SARS-COV 2 (e
variantes) e o aumento de infecções, internações e das incontáveis perdas com a morte por
complicações da COVID-19.
Esses períodos, também conhecidos pelas expressões, primeira onda, segunda onda,
terceira onda, e assim por diante, invariavelmente, impulsionaram à emergência de novas
montagens geográficas e sociais. Trata-se da instalação dos regimes de trabalho remoto (home
office), o fechamento das escolas infantis e o ensino à distância oferecido pelas universidades
que, dentre outras repercussões ocupacionais e econômicas, levaram a um deslocamento de
pessoas das capitais para o interior dos estados da federação, além da procura por novas
modalidades de exercício sico, passeios ao ar livre, com caminhadas e ciclismo, por
exemplo. Estes desdobramentos, por um lado, acabaram por configurar uma retomada de
espaços sicos da cidade e do seu entorno e, por outro lado, elevaram à ordem do dia a
discussão sobre o sedentarismo e os prejuízos para a saúde física e mental.
Mas a ênfase deste ensaio situa-se mais especificamente na reconfiguração
psicossocial advinda com a imersão dos indivíduos nos espaços internos de suas casas.
Pretendemos destacar algumas consequências desses novos engendramentos espaço-
temporais e vinculares para a saúde mental. Para tanto, é preciso problematizar o papel do
corpo e da síntese motora no tempo presente, nesse novo contexto em que a busca por
modalidades de práticas corporais podem ter contribuído e ainda vir a contribuir para uma
reestruturação simlica e temporal, em meio às mudanças tão drásticas que incidem sobre a
subjetividade do nosso tempo histórico e têm instaurado e mantido uma atmosfera permanente
de crise. Como dissemos em outro trabalho, por conta da pandemia de coronavírus, também
nos encontramos em estado de desamparo sociopolítico:
O atual contexto médico-sanitário, a crise global de saúde e a crise política e
econômica rompem com nosso formato de vida e trazem uma realidade que
nos atinge de forma íntima e pungente: não podemos mais nos tocar não
sem recorrer a medidas protetivas. Como fica o corpo na pandemia e
suas restrições? Como ficam os encontros amorosos nesse momento e, por
outro lado, como passar mais tempo juntos em espaços fechados? Ao mesmo
tempo, o corpo social está se esfacelando, em uma perspectiva de
degradação e calamidade (BOCCHI, 2020, p. 1-2).
Qual o lugar do corpo fenomenal e sua relação com o movimento nesta reconfiguração
crítica? É notório que durante os anos de pandemia as pessoas passaram a relatar lapsos e
confusões na percepção do tempo; assim como buscaram novas formas de ocupar-se,
preencher o tempo e inserir-se espacialmente a partir das mudanças. A paisagem urbana foi
alterada, uma parte da população permaneceu em suas casas, enquanto outra parte continuou
frequentando as ruas e mesmo uma parcela significativa de brasileiros vivem em situação de
rua. Não obstante à dimensão política e à valoração ética dessa realidade, este ensaio assume
um caráter exclusivamente fenomenológico devido à tentativa de articular as dimensões da
espacialidade, da corporeidade e da temporalidade, a fim de indagar quais os impactos dessas
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estruturas na saúde das pessoas e, dentre eles, quais efeitos podem ser identificados e,
consequentemente, receberem uma atenção dos profissionais da saúde e da educação.
O CORPO: SUJEITO DO ESPAÇO
A ênfase quanto ao lugar do corpo e do exercício físico na reconfiguração
psicossocial, decorrente dos modos de enfrentamento da pandemia e de suas restrições,
traduz-se, primeiramente, na exigência teórica de precisarmos o estatuto da compreensão do
espaço, do corpo e do tempo, no pensamento fenomenológico. O espaço físico não é um
objeto qualquer; e nem mesmo um objeto natural, mesmo que ele se constitua através da
materialidade do mundo e das coisas. A espacialidade objetiva não é condição necessária e
nem suficiente para dar conta do espaço fenomenal. O espaço - em suas diversas formas
geográficas, com seus sentidos identitários, vieses culturais etc. - é uma topografia concebida
pelo humano. Deste modo, o espaço objetivo é constituído pelas estruturas perceptivas de
ação do sujeito e, por isso, é assumido como um dado nos processos de subjetivação e
apreensão da realidade percebida. Em fenomenologia, podemos afirmar que o espaço é,
sobretudo, vivencial.
O espaço é uma das dimensões fundamentais de nossa estrutura de ser-no-mundo, ele
é espacialidade. O mundo é feito de lugares: o perto, o longe, o bairro, a nuvem, a cadeira, a
sala. No entanto, os objetos exteriores se posicionam para alguém que os e/ou estabelece
essa disposição. Assim, podemos dizer que um objeto está atrás de nós ou ao lado de outro
objeto, acima ou abaixo, à esquerda ou à direita de mim, uma vez que [...] as dimensões do
espaço são criadas a partir das extensões do corpo. O ser é seu centro. [...]. Em termos de
vivência, o espaço tridimensional revela-se como intuição fundamental, a partir da
movimentação do corpo sentido como centro (AUGRAS, 1986, p. 39). Neste sentido, somos
seres perspectivos e espaciais. A espacialidade é relacional, situacional e histórica, diferente
do espaço como tomado pelas Ciências Naturais.
Fatores de duas ordens diferentes intervêm em nossa orientação no espaço.
Os fatores de ordem estática situam os objetos, uns em relação aos outros, no
espaço geométrico, onde tudo é imóvel, relativo e reversível. Mas, além
disso, s vivemos no espaço e o eu que age coloca, a todo instante, diante
de si mesmo, a noção fundamental do eu-aqui-agora”, tornando-a um ponto
absoluto, um verdadeiro centro do mundo. Na vida normal, esses fatores
interpenetram-se. Nossos conhecimentos e imagens mnêmicas vêm se
agrupar em torno do eu-aqui-agora fundamental e nos permitem dizer,
segundo as circunstâncias: “Estou agora em Paris, em Londres, ou em meu
escritório (MINKOWSKI, 2004, p. 140).
Eugene Minkowski discute a noção de contato vital ligada à interpenetração entre o
espaço fenomenal e a vivência imediata do eu no aqui e agora; com isso antecipa um aspecto
central para o desenvolvimento dos objetivos desse trabalho: a questão da temporalidade e seu
possível papel na assimilação e integração de novas experiências. Mas, antes, abordaremos a
espacialidade do corpo próprio e a motricidade a partir da leitura de Maurice Merleau-Ponty,
um dos principais representantes da tradição fenomenológica na França. Para este pensador,
ao considerar:
[...] o corpo em movimento, vê-se melhor como ele habita o espaço (e
também o tempo), porque o movimento não se contenta em submeter-se ao
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Motricidades: Rev. SPQMH, v. 6, n. 1, p. 26-36, jan.-abr. 2022 | ISSN 2594-6463 |
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espaço e ao tempo, ele os assume ativamente, os retoma em sua
significação original (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 149, grifos nossos).
Merleau-Ponty aponta que a precedência da espacialidade corporal em relação ao
espaço objetivo, uma apreensão que fica confundida na medida em que a significação original
do movimento corporal em relação ao espaço “se esvai na banalidade das significações
adquiridas”, ou seja, a percepção do espaço exterior e seus objetos é subsumida como se
possuísse uma natureza primeira. Ocorre que o espaço percebido é incorporado pelas
significações tornadas possíveis pela corporeidade situada no mundo, esta sim é inaugural.
Todavia, o espaço só existe enquanto tal, porque temos um corpo e estamos nele.
O filósofo alerta que não se pode afirmar que o braço que repousa sobre a mesa está
ao lado do cinzeiro, do mesmo modo em que o cinzeiro está ao lado do telefone, como
advogaria uma psicologia associacionista:
[...] o contorno de meu corpo é uma fronteira que as relações de espaço
ordinárias não transpõem. Isso ocorre por suas partem se relacionam umas às
outras de uma maneira original: elas não estão desdobradas umas ao lado das
outras, mas envolvidas umas nas outras (MERLEAU-PONTY, 2011, p.
143).
Este trecho sugere um modo de relação intrínseca entre espaço externo e
espacialidade do corpo próprio”, expressão cunhada pelo autor, a qual ficará mais clara
quando ele nuançar o estatuto ontológico radical de sua noção de espaço. Não estamos
simplesmente inseridos no espaço, como os demais objetos do mundo, mas o habitamos:
A experiência revela sob o espaço objetivo, no qual finalmente o corpo toma
lugar, uma espacialidade primordial da qual a primeira é apenas o invólucro
e que se confunde com o próprio ser do corpo. Ser corpo, nós o vimos, é
estar atado a um certo mundo, e nosso corpo o está primeiramente no
espaço: ele é no espaço (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 205, grifos nossos).
Separamos dois capítulos de Fenomenologia da percepção (MERLEAU-PONTY,
2011), “A espacialidade do corpo próprio e a motricidade” e “A síntese do corpo próprio”,
nos quais Merleau-Ponty recorre à análise da patologia, através da anosognosia (distúrbio em
que o paciente não reconhece mais uma parte do corpo como sendo sua, mas como um ser
estranho) e do exemplo do membro fantasma que ele resgata do seu trabalho anterior, A
estrutura do comportamento (MERLEAU-PONTY, 2006). Através desse procedimento, ele
desenvolve o problema da espacialidade do corpo e antevê a sua capacidade geral de síntese,
que forma e o sentido aos comportamentos e à realidade das coisas percebidas: “[...]
reencontramos na unidade do corpo a estrutura de implicação que já descrevemos a
propósito do espaço” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 206, grifos nossos). O corpo próprio,
portanto, é movimento que se realiza e unifica em estruturas de ação e percepção.
Assim, o corpo não é apenas uma estrutura de sedimentação de experiências. Ele é um
vivido que possui uma dimensão expressiva e instituinte, e nas palavras do filósofo, o corpo é
um vivente que mostra que o existe uma separação entre a expressão e o exprimido: [...] a
ele [corpo] é atribuído uma potência expressiva que lhe é imanente: o corpo é
intencionalidade que se exprime, e que secreta a própria significação (FURLAN; BOCCHI,
2003, p. 449). O mesmo se aplica a toda operação expressiva da linguagem, como revelado
pela sua concepção de fala falante e a fala falada.
Merleau-Ponty esforça-se para demonstrar que nossa experiência espacial se institui
em relação às coisas e em relação ao outro, como corpos situados no mundo”. A experiência
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perceptiva e corpórea que estrutura a noção de espacialidade consensual é mais primitiva do
que as categorias de representação do pensamento formal. O nosso contato mais imediato com
o mundo sensível está ancorado no corpo e sua extensão no horizonte de mundo. É isso que
nos revela o mundo pela primeira vez, e não a consciência intelectiva e seus enunciados.
Segundo Merleau-Ponty, é a inteligência motora tácita - a postura corporal nas tarefas, o
engajamento do corpo com os objetos, aprumar-se para atingir uma meta - presente na rie
intermivel de novos usos do corpo que virão unificar o percebido, ampliar o esquema
corporal e nos permitir a construção racional posterior de um espaço objetivo, o qual será
formado pelas refencias de nosso corpo encarnado.
Outrossim, não nos movemos no mundo de acordo com representações categoriais de
um puro espaço, mas segundo uma intencionalidade” que nos conduz em meio às sínteses
corporais, sem intermédio direto dos conceitos. Não calculamos e tampouco pensamos, de
antemão, para realizar um gesto motor. Simplesmente agimos e [...] repentinamente nossos
poderes naturais vão ao encontro de uma significação mais rica que até então estava apenas
indicada em nosso campo perceptivo ou prático, se anunciava em nossa experiência por
uma certa falta” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 212).
Para pegar um objeto, o corpo todo converge até que [...] o campo perceptivo se
apruma” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 338), capturado por uma síntese motora passiva, em
busca do sentido da meta visada, uma verdadeira rechercheque de início é indeterminada
ou vaga (“uma certa falta”, um impensável que faz com que o corpo se dirija à ação ou a
outrem). A noção ontológica de passividade, em Merleau-Ponty, não é o contrário de
atividade, tão somente indica um modo pré-reflexivo de relação com o mundo que independe
de um sujeito da consciência (como no sono, no esquecimento, no trabalho do sonho). Mais
tarde, em L Institution. La Passivité (MERLEAU-PONTY, 2003), esta dimensão do
impensável, inerente à síntese do corpo próprio, pode ser aproximada do estatuto de um
inconsciente perceptivo, o que não cabe desenvolver neste ensaio. Frisamos que:
Todos esses movimentos estão a nossa disposição a partir de sua significação
comum. É por isso que, nas primeiras tentativas de preensão, as crianças não
olham sua mão, mas o objeto: os diferentes segmentos do corpo só são
conhecidos em seu valor funcional e sua coordenação não é apreendida. [...].
Assim, não reconhecemos pela visão aquilo que todavia vimos frequentemente
e, ao contrário, reconhecemos de um só golpe aquilo que, em nosso corpo, nos
é invisível (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 206).
O autor pondera que podemos “visualizar” partes do nosso corpo que os olhos não
alcançam, as pernas escondidas sob a escrivaninha, os pés dentro dos sapatos nos chegam
como imagem, se assim o buscarmos. O caso da diplopia (visão dupla), em que os olhos,
através da postura corporal, fazem a convergência e a correção da imagem duplicada. Esses
são os poderes de um corpo, e não da atividade de um cógito pensante.
OS TEMPOS PANDÊMICOS E O TEMPO DO AGORA
Em Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty (2011) afirma, a sexualidade, a
espacialidade e a temporalidade são concêntricas, acessar cada uma dessas dimensões é
acessar a subjetividade: Somos convidados a fazer do tempo e do sujeito uma concepção tal
que eles se comuniquem do interior” (p. 550), de modo que analisar a experiência temporal
nos dá acesso à estrutura concreta da subjetividade. E ainda, [...] a temporalidade é o caráter
mais geral dos fatos psíquicos’” (p. 549), sublinhando que existe uma relação íntima entre
tempo e subjetividade.
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Pensamos que a partir do anúncio e deflagração da situação de pandemia pela
Organizão Mundial de Saúde (OMS), os rearranjos espaço-temporais e as alterações
abruptas na ordem habitual da vida contemporânea, como a implementação de protocolos
dicos-sanitários, as novas regras de convincia social e de ocupação dos espaços públicos
e privados, deram início a um processo de reconfiguração da nossa experiência subjetiva e de
sociabilidade sem precedentes na história humana moderna. Como tratou-se de eventos
globais, todos sabem, mas tem um sentido especial em que isto seja relembrado: em um curto
espaço de tempo, fizeram-se necessário a proibição de aglomerações, o fechamento de
espaços públicos e privados (parques, centros comerciais, estádios de futebol etc.), a
obrigatoriedade do uso de máscaras e o isolamento social.
Supomos que este regime de transformações operantes no âmbito individual e social
pode ser pensado a partir da ideia de “instituição”, no sentido merleau-pontyano do termo.
Seria a pandemia uma instituição, enquanto um modo de reconfiguração de ser-no-mundo e
de nossas relações que foram levadas a um outro nível de engajamento social e perceptivo?
Em havendo verdade nesta hipótese, o que esta nova instituição confirma e o que ela
diferencia? De qualquer modo, eis os traços centrais de uma instituição na perspectiva da
ontologia de Merleau-Ponty.
A instituição tem um caráter fundamentalmente histórico e temporal, existe uma
síntese espontânea interna ao tempo que opera a ligação entre as partes e o todo, por
transformação torna-se particular e, por conservão, generaliza (MOURA, 2018). Essa
transitividade, em constante movimento entre o ser (presente/passado) e o vir a ser (porvir),
confere à instituição o caráter de uma “matriz simbólica”. Nos cursos do Collège de France
(MERLEAU-PONTY, 2003), ele afirma, em diferentes ocasiões, que o tempo é uma matriz
simlica e o modelo de sua noção de instituição.
Em O visível e o invisível (MERLEAU-PONTY, 2014)
3
, a propósito da consciência
transcendente e da fundação (Stiftung) de um sistema de índices temporais”, encontramos:
[...] o tempo (já como tempo do corpo, o tempo-taxímetro do esquema corporal) é o modelo
dessas matrizes simbólicas que são abertura ao ser (p. 171, grifos nossos). A
temporalidade é o núcleo da instituição, no sentido em que esta instaura um tempo unificante
em um campo transcendental de presença (e ausência), o qual inaugura o que está por vir, sem
negar o passado, mas aprofundando aquilo que nos precedeu e sua dimensão histórica.
Como salienta Moura (2018),
[...] trata-se de uma unidade que irradia, totalidade que, ao particularizar-se
reafirma sua coeo processual. [...]. A unidade do tempo, sua quase
eternidade, não se configura como um transcendental puro, passagem a uma
ordem separada, mas como abertura que vincula cada parte à generalidade
mais ampla, confirmando-a por diferenciação (p. 86-87).
Por fim, sobre a noção merleau-pontyana de instituição, à qual recorremos para tentar
compreender e melhor elucidar o profundo impacto na saúde mental, extraímos como aspecto
central sua relação direta com o instante presente: O tempo originário não é nem decadência
(retrocesso sobre si) nem antecipação (avanço sobre si mesmo), mas ele é agora, ele é o agora
que é [...] o que é e o que pede para ser; ele se tornou o que é(MERLEAU-PONTY,
2003, p. 36, grifos e tradução nossas). O núcleo do tempo é instaurado no ser do “agora”, e
o no passado ou no futuro (MOURA, 2018). O que equivale dizer que somente vivemos no
presente, o ser perspectivo se constitui no tempo do agora, que se dilata no vir a ser (gera o
futuro) e seu horizonte de significações, sem negar o passado, que permanece como
lembraa e esquecimento.
3
Último texto do autor, que falece em 1961, deixando esse material inacabado.
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Josiane Cristina Bocchi; Ariela Cursino Lanfranchi
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 6, n. 1, p. 26-36, jan.-abr. 2022 | ISSN 2594-6463 |
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Como um dos resultados principais deste ensaio, tais processos instituintes,
responsáveis por dar forma e sentido ao vivido da experiência, ficaram bastante
comprometidos pelo corte daquele momento presente, março de 2020. Neste caso, a tragédia e
seus efeitos prologados não foram anunciados e, assim, afetaram a coesão processual dos
tempos vividos (o passado) com a catástrofe (presente).
As medidas sanitárias de controle da propagação do vírus, como anteriormente
citadas, representaram uma drástica e abrupta quebra no nível das relações sociais e afetivas.
Assim, teve início toda uma escalada de transformações em que não se sabia o quão
duradouras seriam. Alguns acreditavam que o estado de pandemia se encerraria em algumas
semanas, talvez dois, três meses. Sabemos que nossa história recente seguiu outra direção,
numa longa e indefinida atmosfera de incertezas, temores e inseguraa (sica, financeira,
afetiva, existencial). As medidas de restrição de contato social não cessaram de produzir
dilemas éticos, legais e econômicos, os quais afetaram a paisagem social e o nosso imaginário
psíquico, assim como se fizeram, incisiva e penosamente, sentir na saúde do corpo e na saúde
mental. Ora, [...] as pandemias tendem a ser marcadas por perdas em massa: não somente de
vidas humanas, mas também de rotinas, costumes e regras, obrigando as pessoas a lidarem
com um cenário de imprevisibilidade atípico” (ALVES et al., 2021, p. 1).
Não tardou para que o estado de luto coletivo e as angústias suscitadas pelo
prolongamento do distanciamento social se traduzissem em formas de sofrimento, algumas
com manifestações corporais (crises de ansiedade, ataques de pânico, innia ao dormir ou ao
acordar, maior consumo de bebidas alcoólicas) e outros sinais preocupantes nem tão fáceis de
identificar, pelo menos não no início de sua evolução, como no sono não reparador,
oscilações do humor, francas reações de desânimo, tristeza, desespero ou raiva. As crianças
foram um caso específico, incialmente muitas pareciam terem se adaptado rápida e
silenciosamente, “de férias” da escola ou em casa com suas famílias. Ao final de 2020, os
consulrios médicos e de psicoterapeutas testemunharam uma outra realidade sobre os
efeitos da pandemia na experiência infantil.
Suspeitamos que, em certo sentido, as crianças e os idosos tenham sido
significativamente afetados pelas consequências psicossociais instituídas pela pandemia,
principalmente, porque são os que foram impactados de modo específico na vincia da
temporalidade, por razões distintas. A Psicologia tem teorias sobre desenvolvimento e ciclo
vital (infância, adolescência, vida adulta, velhice) que facilmente atestariam que a gradação
do tempo é experienciada de forma relativa, conforme o repertório neuroendócrino e psíquico,
bem como as dinâmicas dos papeis sociais e a maior ou menor complexidade das experiências
a serem elaboradas. Os mais velhos têm, via de regra, menos tempo pela frente. Por outro
lado, os anos da infância têm, digamos, uma valoração mais densa, no sentido de comportar
um maior número de transformações (fisiológicas, psicossociais etc.) do que as fases da vida
adulta. O amadurecimento infantil tem janelas específicas para incorporação de aprendizados
e novos sentidos. O grande exemplo é a importância crucial do primeiro ano de vida para a
inserção na linguagem e desenvolvimento neuromotor.
O mais importante é que as pessoas, no geral, se queixavam de alterações na
percepção subjetiva da passagem do tempo: desde a impressão de que o tempo fluía mais
lentamente ou de forma veloz, até estágios de tédio e a apreensão de que o tempo estava se
fechando sobre si mesmas. Chamamos a atenção para as diversas formas de relato sobre
lapsos na captação temporal: a) Estranhamento quanto aos aniversários completados (“Não
parece que se passaram dois anos, um ano”); b) Alterações do sensopercepção, função
psíquica responsável pelo juízo crítico da realidade, com estados de desrealização e
despersonalização
4
e c) Tornaram-se frequentes frases comoIsso é surreal”, “Ninguém
4
Respectivamente, sensações alteradas em relação ao reconhecimento do ambiente ao redor e desconforto ou
estranhamento quanto à imagem corporal e no contato e reconhecimento do próprio corpo.
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O Ser perspectivo em movimento
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imaginava que isso aconteceria”. Evidentemente, muitos duvidaram da verdade dos fatos,
outros produziram mentiras, distorceram fatos e propagaram falsas notícias, com efeitos
devastadores para a assunção do cuidado e protão dos demais. Por fim, destacamos que
haveria até um sentimento de irrealidade em relação aos acontecimentos daquele tempo
presente, resultante do grande volume de mudanças em curto intervalo de tempo e do caráter
traumático da quebra de expectativas e da imprevisibilidade generalizada.
Considerando que a experiência temporal nos conduz à estrutura concreta da
subjetividade e [...] a temporalidade é o caráter mais geral dos fatos psíquicos
(MERLEAU-PONTY, 2011, p. 549), as alterações na apreensão temporal são, a nosso ver,
um fenômeno relevante na base da produção de muitas formas de mal-estar, angústia e
ansiedade. Pensando que a elaboração de perdas e os processos de assimilão dos lutos por
morte real e outros agravos vinculam-se aos recursos psicológicos da função simboligênica,
isto é, da capacidade de formar símbolos, transformando os acontecimentos traumáticos em
inscrições psíquicas passíveis de serem representadas através da linguagem falada, do recurso
à escrita, à produção artística, à apreciação estética, à formulação de narrativas pessoais e
familiares. A função simbólica também pode ser descrita, consensualmente, como modos de
subjetivar, ao encontrar meios de assimilação e expressão dos eventos, levando-os para outro
nível de compreensão do real, deslocado da concretude imediata das ocorrências.
A ausência da capacidade simbólica [...] traduz com isso uma espécie de aderência
ao atual, uma maneira curta e pesada de existir” (MERLEAU-PONTY, 2014, p. 197), uma
falta que nos animais se explica pela fixação aos a priori sensório-motores da espécie, ao
passo que no humano a função simlica permite significar um comportamento por uma
“multiplicidade perspectiva” e faz com que um novo acontecimento se abra para o valor
próprio das coisas e à intenção daquilo que ele visa. Para Merleau-Ponty, somente com as
fórmulas simlicas, uma conduta deixa de ter um significado e torna-se ela mesma o próprio
significado, e com isso assume a potência da expressão. O símbolo autoriza que uma coisa
seja representada por outra, sobretudo pelo intermédio da linguagem expressiva (a fala, a
escrita, a leitura, a arte).
Isso posto, propomos que a pandemia teria nos privado ou dificultado do acesso às
matrizes simbólicas que, como vimos com Merleau-Ponty, constituem “a abertura ao ser” e à
possibilidade de dar novos significados àquilo que se vive. Para ele, em suma, a instituição
nada mais é do que um acontecimento histórico que abre novas dimensões de sentido e pede
sua resolução em outro nível de engajamento social e perceptivo.
O SER PERSPECTIVO E AS PRÁTICAS CORPORAIS INTEGRATIVAS
O Ser perspectivo (ou o perspectivismo da percepção) não se limita àquilo que entra
pelos olhos e as retinas, diz Merleau-Ponty (2006), em A estrutura do comportamento. Ele
lembra que percebemos um cubo inteiro, embora vejamos apenas três faces: “As pretensas
causalidades corporal, social e psicológica se reduzem a contingência das perspectivas
vividas que limitam nosso acesso aos significados eternos (MERLEAU-PONTY, 2014, p.
345). Isso é o mesmo que dizer que o Ser perspectivo assegura um índice de realidade ao
percebido. Assim, até mesmo a morte não é desprovida de sentido”, porque os
acontecimentos fortuitos da vida ameaçam o sentido de eternidade, o qual ela crê exprimir.
Entendendo que o corpo é mais do que apenas uma potência orgânica, sendo
constitdo de afetos e de um poder geral de significação, ele se insere socialmente de forma a
ser alvo de normatividades, controle, solicitações diversas, como demandas neoliberais e de
consumo. Muito além do indivíduo, de modo geral, o corpo é atravessado pelos discursos e
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Josiane Cristina Bocchi; Ariela Cursino Lanfranchi
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acontecimentos do plano social (SILVA JUNIOR, 2017). À medida que ele é afetado por
relações externas, também é preciso que se diga que:
[...] um corpo é sempre construído pelos discursos e que, portanto, haverá
falhas nesta construção. Mas talvez seja mais preciso falarmos em falhas
necessárias: estou me referindo, aqui, ao desencontro estrutural do corpo
frente ao que se sabe e se diz sobre ele, sobre sua impossibilidade de
compreensão absoluta pela linguagem (SILVA JUNIOR, 2017, p. 137).
E como dizem os psicanalistas, quando falha a linguagem tem-se o corpo. Como
colocado, devido à pandemia, houve um aumento no sofrimento psíquico, maior nível de
estresse, ansiedade e irritabilidade, além da vivência prolongada da insegurança. Houve maior
incincia de transtornos e diagnósticos psiquiátricos, como depressão, ansiedade e transtorno
do estresse s-traumático no período dos anos de 2020 e 2021. As mudanças repentinas e
compulsórias agravaram as condicionantes sociais de saúde (GARRIDO; RODRIGUES,
2020).
Por outro lado, a busca por atividades sicas e corporais, como forma de
enfrentamento ao sedentarismo e práticas de autocuidado, também aumentaram durante a
pandemia. A prática de exercícios físicos libera endorfinas, o que proporciona, entre outros
benefícios, estados de bem-estar e relaxamento físico. Dessa forma, tais exercícios
contribuem para a prevenção e o tratamento de depressão, ansiedade e síndrome do pânico
(SUZUKI et al., 2021). Em uma prática regular de exercícios físicos, são experienciados
efeitos durante e logo após a atividade, no que diz respeito ao cansaço físico e à descarga de
energia, como também efeitos a longo prazo. No dia a dia, o exercício físico auxilia no foco e
na concentração no trabalho e nos estudos.
Sendo assim, a atividade sica, quando praticada com constância e orientações
corretas, proporciona o bem-estar físico e mental, de forma a ser utilizada como uma
ferramenta de promoção de saúde. Segundo Silva e colaboradores (2021), sintomas
associados ao diagnóstico de ansiedade se apresentam por meio de preocupações excessivas
sobre o futuro, tensão muscular, dificuldade para dormir e irritabilidade. Tais sintomas podem
comprometer o sistema imunológico, de forma a deixar o indivíduo mais suscetível a
infecções, inclusive por SARS-CoV-2. O exercício sico pode agir como um aliado na busca
por um estilo de vida mais saudável, inclusive atuando na diminuição de quadros de dor
crônica e fortalecendo o sistema autoimune.
Por conta das restrições sanitárias advindas da pandemia, optou-se pela realização de
exercícios sicos passíveis de adaptação ao ambiente doméstico, com pouco espaço e pouco
material. A procura por Práticas Integrativas e Complementares à Saúde (PICS), como Yoga e
meditação, cresceu nesse período, tendo em vista que, para essas atividades, não é preciso ter
muito espaço ou material adequado.
As PICS têm um lastro positivo no tratamento de sintomas em doentes
crônicos e vêm se mostrando eficazes no controle dos sintomas ansiosos e
depressivos durante o isolamento social. Várias dessas práticas, a exemplo
de meditação e yoga, ajudam na concentração, autocontrole,
autoconhecimento e são bastante acessíveis, sendo encontradas aulas desde
plataformas de deos até aplicativos de celular. Assim, as PICS devem ser
consideradas no contexto da pandemia de COVID-19 tanto na promoção da
saúde, quanto na prevenção e tratamento de agravos de saúde mental
(SILVA et al., 2021, p. 148).
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O Yoga é um tratamento complementar oferecido pelo SUS e aprovado pela Política
Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no Brasil. Entendido como uma filosofia
de vida prática, envolve técnicas de relaxamento, respiração e concentração que fortalecem a
musculatura, previnem doenças, promovem autocuidado e reduzem sintomas de transtornos
mentais, como ansiedade e depressão. O Yoga, de origem sânscrita, surgiu na Índia antiga
como uma prática não dualista, que abrange mente e corpo como uma totalidade do ser
humano. “De maneira etimológica deriva da raiz sânscrita yuj que quer dizer conjugar,
juntar, jungir. O yoga advém de uma filosofia oriental, que envolve posturas corporais e
exercícios respiratórios em busca do equilíbrio entre corpo, mente e alma” (SILVA et al.,
2021, p. 154). Embora na atualidade existam vertentes diferentes do Yoga, os principais
componentes incluem: os preceitos éticos (yamas e nyamas), posturas sicas (asanas),
técnicas de respiração (pranayamas), concentração, abstração dos sentidos e meditação
(HERMÓGENES, 2005).
Revisões sistemáticas indicam que o Yoga pode ser considerado como uma opção de
tratamento auxiliar viável e seguro para pacientes com doenças cardiovasculares, diabetes,
doença pulmonar crônica, transtorno de estresse pós-traumático e com níveis elevados de
ansiedade e depressão (SILVA et al., 2021). O controle de doenças crônicas é outro aspecto
importante que deve ser destacado, uma vez que estas estão associadas com um maior índice
de mortalidade por COVID-19. A aplicabilidade da prática de Yoga na busca pela saúde
mental, seja na prevenção ou como ferramenta de tratamento, pode trazer efeitos benéficos,
incluindo reduções em sintomas depressivos, estresse e ansiedade e aumentando sentimentos
de satisfação com a vida e vitalidade. Ademais, as técnicas e componentes do Yoga são
viáveis no contexto de distanciamento social, tendo em vista que a prática pode ser realizada
através de aulas virtuais, a partir do monitoramento de um profissional, com as instruções
adequadas para realização da atividade em domicílio.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para finalizar, indicamos que, aliadas às intervenções psicológicas e psicoterápicas, as
práticas de autocuidado direcionadas ao trabalho com a mobilidade e o corpo, tornaram-se
ferramentas fundamentais para a busca do reequilíbrio emocional e mental. A adesão às PICS,
como Yoga e meditação, pode se configurar como uma estratégia importante para a redução
dos sintomas de sofrimento psíquico, além de proporcionar modalidades de inserção e
retomadas da experiência e do acesso ao vivido no tempo presente. Pelo exposto neste
trabalho, podemos dizer que as práticas corporais do yoga têm um caráter integrativo.
A demonstração das noções merleau-pontyanas de corpo próprio, temporalidade e
instituição nos deram subsídios para propor que a retomada da espacialidade, isto é, o modo
como subjetivamos o espaço e passamos a viver nele, está diretamente relacionada à busca de
estratégias facilitadoras para as sínteses do corpo próprio e de seu acesso ao imediato presente
do nosso vivido. Instituir no sentido de pedir uma resolução, de convidar para
desenvolvimentos futuros, eis um acontecimento que mesmo quando ultrapassado sempre
será retomado e permanece como referência para as organizações que dermos para ele.
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Motricidades: Rev. SPQMH, v. 6, n. 1, p. 26-36, jan.-abr. 2022 | ISSN 2594-6463 |
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Recebido em: 22 fev. 2022.
Aprovado em: 13 mar. 2022.