v. 7, n. 3, p. 196-210, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 196-210, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p196-210
Escrevivências na andarilhagem de uma pesquisadora em
práticas sociais e processos educativos
Writings in the wandering of a researcher in social practices and educational processes
Escribiendo en el deambular de una investigadora en prácticas sociales y procesos educativos
FRANCINALDA MARIA RODRIGUES DA ROCHA
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS, UFSCAR, SÃO CARLOS-SP, BRASIL
RESUMO
Este ensaio apresenta uma discussão sobre práticas sociais e processos educativos através das escrevivências de
uma pesquisadora, na andarilhagem dos saberes, a partir de situações da realidade, em uma escrita poética
pautada pela subjetividade e intersubjetividade que parte do ato de escre-viver”, inspirado na escritora preta
Conceição Evaristo. Partimos de um posicionamento nas discussões das obras de Ailton Krenak, Paulo Freire,
Ernani Maria Fiori, Enrique Dussel e Nelson Maldonado-Torres em busca de nossa reflexão sobre os aspectos
conceituais, em tempos nos quais lutar pela libertação se mostra como questão urgente para a humanidade que se
encontra violentada pelo capitalismo, eurocentrismo e colonialismo que afetam a democracia e a cidadania.
Palavras-chave: Processos Educativos. Práticas Sociais. Colonialismo.
ABSTRACT
This essay presents a discussion of social practices and educational processes through the lived experiences of a
researcher, in the wanderings of knowledge, based on situations from reality, in a poetic writing guided by
subjectivity and intersubjectivity which comes from the act of writing the experience, inspired by the Black
writer Conceição Evaristo. We start from a position in the discussions of the works of Ailton Krenak, Paulo
Freire, Ernani Maria Fiori, Enrique Dussel and Nelson Maldonado-Torres in search of our reflection on
conceptual aspects, in times when fighting for liberation appears as an urgent matter for humanity, which is
violated by capitalism, eurocentrism, and colonialism that affect democracy and citizenship.
Keywords: Educational Processes. Social Practices. Colonialism.
RESUMEN
En este ensayo se presenta una discusión sobre prácticas sociales y procesos educativos a través de los escritos y
de las vivencias de una investigadora, en el deambular del conocimiento, a partir de situaciones reales, en una
escritura poética guiada por la subjetividad y la intersubjetividad que surge del acto de escribir la experiencia,
inspirado en la escritora negra Conceição Evaristo. Partimos de un posicionamiento en las discusiones de las
obras de Ailton Krenak, Paulo Freire, Ernani Maria Fiori, Enrique Dussel y Nelson Maldonado-Torres, en busca
de nuestra reflexión sobre los aspectos conceptuales, en tiempos en que la lucha por la liberación se muestra
como un tema urgente para la humanidad, vulnerado por el capitalismo, el eurocentrismo y el colonialismo que
afectan la democracia y la ciudadanía.
Palabras clave: Procesos Educativos. Prácticas Sociales. Colonialismo.
1
Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA/UFPI). Núcleo de Pesquisa e Extensão Rural
(NUPER/UFSCar). E-mail: francinalda.rocha@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0009-0001-8234-0556.
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Escrevivências na andarilhagem de uma pesquisadora em práticas sociais e processos educativos
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INTRODUÇÃO
Este ensaio é fruto de discussões sobre Práticas Sociais e Processos Educativos
descrito de forma poética e acadêmica possibilitando reflexões críticas ao colonialismo do
saber, do poder e do ter, conforme Ailton Krenak (2020), Paulo Freire (1987), Ernani Maria
Fiori (1991), Enrique Dussel (2003; 2016) e Nelson Maldonado-Torres (2013).
Entendemos que a prática social acontece por meio das interações que se estabelecem
entre as pessoas e delas com os diferentes ambientes (cultural, social e natural) que se
sustentam na visão de mundo transformando jeitos de ser e viver (Oliveira et al., 2014).
Assim, é preciso compreender durante a pesquisa os processos educativos presentes nas
comunidades em suas práticas sociais. Como enfatiza Tafuri (2021) as práticas sociais se dão
entre as pessoas com intencionalidade em busca da transformão da realidade, estabelecendo
relações com elementos políticos e culturais para o fortalecimento dos projetos coletivos.
Destarte, por meio da linguagem metafórica, que se estabelecerá como o termo
colcha de retalho”. A colcha de retalhos está associada ao cotidiano de muitas pessoas na
América Latina, pois representa uma construção do que é reaproveitado para um fim útil.
Aliada a esta construção há diferentes significados, pois é importante querer ser costurado/a e
o ficar isolado/a (OLIVEIRA et al., 2008). O ensaio vai fazer esse convite, por meio da
analogia da colcha, a cada pesquisador/a para adentrar neste trabalho manual que requer
atenção aos detalhes, precisão e uma visão geral coesa. O texto estará estruturado com o
entrelaçar da trajetória da pesquisadora com os autores anteriormente citados.
Para uma práxis transformadora da realidade da pesquisadora foram percorridos
diferentes caminhos, frente aos desafios e embates sociais que estavam impregnados no
movimento de um corpo afetado pela colonialidade do ter, do ser e do saber que silenciam as
pessoas das comunidades tradicionais (tais como, indígenas, ribeirinhas, quilombolas...) e das
demais excluídas socialmente (mulheres, negros, pessoas com deficiência, pessoas de baixa
renda, idosos, dentre outras).
Nesse sentido, a andarilhagem é apresentada como forma de relatar: caminhos,
percursos, trajetos, sendas, saberes, sabores, dores e cicatrizes que foram se configurando no
processo de aprendizagem existencial, por falar sobre vidas, sobre humanidade, pessoas reais
que se reconfiguram na trajetória de cada pesquisador/a, e passa a constituir estratégia e
construir identidade e raízes a partir do saber de experiência feito, filofico, reflexivo e
crítico, abrindo novas possibilidades no alargamento do olhar para a realidade social, cultural,
ambiental e econômica: contextualizada em diferentes tempos-espaços da experiência vivida
por esta pesquisadora, ressignificados no presente.
Este trabalho apresenta-se dividido em sessões que receberão formas a ser desenhadas
em cada pedaço de tecido da “colcha de retalho” tendo como ponto de partida o entendimento
que os bens naturais são essenciais para o viver; em seguida, apresentaremos as concepções
sobre a colonialidade do ter, do poder e do saber que propiciam a compreensão das
intersubjetividades vivenciadas na realidade da pesquisa de campo, na sequência a
compreensão do papel da pesquisadora frente aos desafios impostos pelo eurocentrismo. Ao
final são apresentadas as considerações com interlocuções críticas alusivas ao conhecimento
epistemológico em relação às práticas sociais e processos educativos.
PRIMEIRAS PALAVRAS NA CONFECÇÃO DA COLCHA DE RETALHOS DO SABER VIVER
Cada pesquisador/a, pensando a seu modo, forma uma grande colcha no processo da
investigação científica. Para realizar este feito é preciso fazê-la junto com as pessoas, como
ressalta Paulo Freire (1987). Tanto uma colcha de retalhos quanto uma pesquisa são formados
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por elementos desconexos, que ao serem organizados revelam padrões e significados mais
amplos.
Assim, na costura da “colcha de retalhos” da vida é preciso fazer primeiro os
alinhavos na compreensão filofica da existência e resistência das lutas, bem como de
compreensão do que será pesquisado e com quem se fará a pesquisa. O ponto central deste
ensaio é apresentar reflexões sobre o estudo e o fazer filofico, em que nos propõe pensar
nos desafios e compromissos com aqueles/as que se encontram na exterioridade do sistema-
mundo que é mantido pela Colonialidade-Modernidade. Filosofar é uma atividade inerente
aos seres pensantes, por isso, é preciso levar em consideração também as filosofias presentes
nos povos originários que historicamente são desconsiderados pela ciência eurocêntrica, pois
filosofar é [...] um pensar crítico sobre o próprio pensar, e dele sobre nós mesmos, os(as)
outros(as) e a realidade, fazendo sobre isso algumas problematizações que se apresentam a
quem quer pesquisar a partir da hoje chamada América Latina” (AQUINO-PEREIRA 2022,
p. 141-142).
Para isso, o/a pesquisador/a precisará aprender a descolonizar suas metodologias e
práticas de campo, levando em consideração a própria concepção do que seja uma pesquisa
científica, pois para descolonizar a pesquisa é necessário um esforço crítico para superação
das influências coloniais e eurocêntricas que historicamente influenciaram a condução da
pesquisa. Esse desvelamento reconhece as formas de poder, permeada pelas visões
dominantes que foram perpetuadas pelo colonialismo nas práticas científicas.
Assim, realizar nossas pesquisas com as pessoas de diferentes grupos sociais, que são
marginalizados e excluídos, requer profundidade, atenção e cuidado com a aproximação,
inserção e estudo, para que, em alguma medida, possamos aprender e contribuir com as
pessoas e a comunidade participante da investigação. Além de melhor compreender o
contexto em que vivem as pessoas em dado grupo social, precisamos também, considerar
arcabouço teórico-metodológico que pode nos dar suporte no que será investigado.
Assim, apresentamos as primeiras escrevivências
2
inspiradas a partir de Aquino-
Pereira (2022) com lócus na escuta da pesquisadora na realidade do campo.
Sujar os pés na lama.
Impregnar-se de resistência
Contra as ideologias colonizadoras.
Da lama dos povos originários
Exalam o berçário do viver
Na dicotomia com o capital
Silencia e massacra
Até sagrar e morrer.
Um filosofar bem seu
Acompanhado de dor, alegria e Bem Viver
Movimento controverso desde o ventre materno
Intervir
In-surgir
Lançar novas redes
Libertar-se da opressão (elaborada pela autora).
2
O termo escrevivência utilizado no ensaio foi inspirado na escritora preta Conceição Evaristo, que escreve as
experncias de si e da coletividade em um ato imbricado em sua vivência no narrar e escrever pela mesma
pessoa (DUARTE; NUNES, 2020).
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Os trechos do poema nos convidam a refletir o porquê, para quê e para quem fazer
filosofia. São queses centrais a serem compreendidas a fim de superar as abordagens
superficiais e ir na direção do filosofar, rompendo com o colonialismo, pois “O decolonial
denota, então, um caminho contínuo de luta no qual se pode identificar, visibilizar e encorajar
‘lugares’ de exterioridade e construções alter-(n)ativas” (AQUINO-PEREIRA 2022, p. 126).
Ao acertar os alinhavos na compreensão filofica é preciso costurar a existência na
intencionalidade do chão que se pisa para romper com o colonialismo e entender as nossas
atitudes para o cuidado com o Planeta e com a vida. É um alerta urgentíssimo. Qual o preço
que iremos pagar por estarmos vivos? uma dicotomia existencial, uma tensão dialética.
Precisamos refletir criticamente sobre nossas atitudes e se estas possibilitam a continuidade da
vida humana na Terra. um impasse na humanidade que faz pensar se realmente é
importante Ser ou Ter, Viver ou Morrer. E viver com qualidade com a modernidade viciada
em um consumo compulsivo motivado a desconectar da natureza? Conforme enfatiza Krenak
(2020, p. 14) Estamos a tal ponto dopados por essa realidade nefasta de consumo e
entretenimento que nos desconectamos do organismo vivo da Terra”.
Krenak (2020) alerta a pensar sobre o chão que cada pessoa pisa e a atitude que
realiza. Chega de procurar culpados. É preciso assumir responsabilidade: “Seja na floresta,
seja em um apartamento, precisamos despertar nosso poder interior e parar de ficar caçando
um culpado ao nosso redor: uma corporação, um governo. Porque essas coisas todas acabam e
nós não podemos ter uma data de validade igual à delas” (p. 14-15). Sair em busca de uma
desculpa para dizer que se faz a sua parte. Isso se deve por nos sentirmos superiores à
natureza, como destaca ainda o autor: “A maior parte das invenções é uma tentativa de nós,
humanos, nos projetarmos em matéria para além de nossos corpos. Isso nos sensação de
poder, de permanência, a ilusão de que vamos continuar existindo” (p. 13).
O que seria a vida? Para Krenak (2020, p. 18) “A vida é esse atravessamento do
organismo vivo do planeta numa dimensão imaterial”. E reitera: [...] a vida é fruição, […]
uma dança smica, e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária” (p. 64). É
preciso fazer uma auto-avaliação das atitudes em um ato de amorosidade. Compreender que a
natureza e nós somos a mesma entidade, por isso precisamos habitar no Planeta de maneira
equilibrada, compreender e respeitar os demais entes vivos: fauna, flora, morro, montanha,
rio. Entender a Terra também como organismo vivo.
Neste intuito, trechos do cordel das escrevivências da pesquisadora vêm contribuir na
reflexão sobre o viver a partir das contextualizações de Krenak (2020).
Vicia o consumismo
A vida perde o valor
E procura-se o(a) culpado(a)
Do que pode causar dor
Pelas ações do humano
No trilhar de cada ano
É tudo desproporcional
Pobres ficando mais pobres
A depender dos mais nobres
No mundo descomunal
Viver seria pra q?
Se a vida é fruição
Pense que é sustentável
Em cada passo da ação
Educar que ultrapassa
Instituição escassa
Ofende a liberdade
200
Francinalda Maria Rodrigues da Rocha
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Fabricando a loucura
Insana é a criatura que fala a sua verdade (elaborada pela autora).
Pode parecer utópico, mas, a alternativa mais palpável para a continuidade da vida no
planeta é pensar em uma perspectiva coletiva, uma conexão com os outros seres, como diz
Krenak (2020, p. 22) [...] onde as pessoas aprendem diferentes linguagens, se apropriam de
recursos para dar conta de si e do seu entorno” e ainda “Acho que o que estamos passando é
uma espécie de ajuste de foco no qual temos a oportunidade de decidir se queremos ou não
apertar o botão da nossa auto extinção, mas todo o resto da Terra vai continuar existindo” (p.
35). A decisão para continuar a viver ou não dependerá principalmente de nós.
SENTIDOS DA COLONIALIDADE DO PODER, DO SABER E DO TER
Quijano (2005) nos provoca a olhar para o eurocentrismo, como uma mentalidade não
exclusiva dos europeus e nem de quem se encontra com o poder econômico mundial, pois esta
passa a estar presente dentro do processo educativo impregnado dessa hegemonia do poder
colonial. O que impõe a uma verdade que se está em um caminho linear de desenvolvimento
em que as pessoas são categorizadas como inferiores ou superiores, racionais ou irracionais.
Ironicamente, os criadores desta concepção são também os deres da corrida. O que
possibilita um pensamento contradirio que faz com que o povo se perca no papel que passa
a desempenhar, perfazendo um jogo de posição de dominação que ultrapassa os limites físicos
e econômicos, indo em direção aos campos cultural e do pensamento. “Essa perspectiva
binária, dualista, de conhecimento, peculiar ao eurocentrismo, impôs-se como mundialmente
hegemônica no mesmo fluxo da expansão do domínio colonial da Europa sobre o mundo”
(QUIJANO, 2005, p. 111).
Ao se pensar sobre a colonialidade do poder, Quijano (2005, p. 116) destaca que [...]
o padrão de poder baseado na colonialidade implicava também um padrão cognitivo, uma
nova perspectiva de conhecimento dentro da qual o não-europeu era o passado e desse modo
inferior, sempre primitivo”. Nesta perspectiva, o autor utiliza da análise do materialismo
histórico e da ideologia liberal na compreensão do eurocentrismo. Propõe um avanço na busca
de uma teoria de classificação da sociedade, que abarque os aspectos das relações de
exploração, dominação e conflito no controle do trabalho, da natureza, do sexo, da
subjetividade, da autoridade e, principalmente, que consolide o poder. Esta ainda está
marcada atualmente, pois “A colonialidade do poder ainda exerce seu domínio, na maior parte
da América Latina, contra a democracia, a cidadania, a nação, o e o Estado-nação moderno”
(QUIJANO, 2005, p. 124).
No pensamento de Quijano, (2005) apresentamos as escrevivências na compreensão
da colonialidade do poder, instigando a refletir como se encontram estabelecidas as relações
sociais.
Nas relações sociais
Em todos os espaços
Fica um jogo de força de quem pode mais
Marcada pela colonialidade
Que perpassa a nossa história
E se insere na globalização mundial.
Uma disputa desigual
Que nos oprime na função social
Permanece uma dualidade
Comandada pelo capitalismo
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Em que a raça e a hegemonia burguesa prevalecem (elaborada pela autora).
Em cada verso somos provocados/as a compreender a colonialidade e a sua correlação
com o poder do capitalismo que teve sua origem na América dentro de um padrão
espaço/tempo e expandiu-se pelo mundo globalizado, marcado pela lógica da estrutura de
poder. O entendimento do que acontece com a naturalização das relações de colonialidade que
tenta justificar a ferramenta opressora sobre raça, etnia, patriarcado, se torna marcante na
modernidade.
As relações de poder coloniais são estabelecidas na sociedade moderna por meio das
configurações econômicas, do racismo estrutural, da colonialidade cultural e epistêmica nos
terririos colonizados, o que torna evidente a naturalização de práticas de dominação. Para
Quijano (2005, p. 126) “O que pudemos avançar e conquistar em termos de direitos políticos
e civis, numa necessária redistribuição do poder, da qual a descolonização da sociedade é a
pressuposição e ponto de partida, está agora sendo arrasado no processo de reconcentração do
controle do poder”. É um convite para busca da libertação e a descolonização das pessoas e
das sociedades.
Nesse sentido, é compreensível verificar que a ciência está contribuindo para o
desenvolvimento das sociedades, mas que precisa reconhecer que há outros conhecimentos ao
seu lado, com outros critérios de validade e outras concepções, que devem ser valorizados e
que podem entrar em diálogo, o que vem corroborar com o que Santos (2013) denomina de
ecologia de saberes.
Segundo Santos (2013), a compreensão da ecologia de saberes está relacionada com
diferentes ideias. Na primeira ideia está uma epistemologia dominante assentada no contexto
da diferença cultural (mundo moderno cristão ocidental) e da diferença potica (colonialismo
e capitalismo). O outro aspecto seria o epistemicídio (supressão dos conhecimentos locais)
que passa pela intervenção cultural e potica. A terceira ideia diz que ciência moderna não é
caracterizada como um mal ou um bem, pois é necessário levar em consideração sua
característica contextual. A quarta ideia apresenta que é possível perceber os entraves para o
surgimento de epistemologias alternativas devido à ciência ainda se encontrar fechada em sua
cúpula. Enfim, ainda a ideia que procura refletir sobre a pluralidade das epistemologias
dominantes no mundo, tanto no interior da ciência (a pluralidade interna da ciência), como na
relação entre ciência e outros conhecimentos (a pluralidade externa da ciência).
A epistemologia, segundo Santos (2013), é toda ideia refletida ou não sobre as
condições do conhecimento válido, que fez por muito tempo com que a ciência quisesse se
sobrepor acima dos outros conhecimentos. Assim, uma epistemologia dominante que se
estabelece na exclusão dos povos e de sua cultura. “A epistemologia dominante é, de facto,
uma epistemologia contextual que assenta numa dupla diferença: a diferença cultural do
mundo moderno cristão ocidental e a diferença potica do colonialismo e capitalismo (p.
17).
No tecer direcionado ao entendimento das práticas sociais, trechos da escrevivência
foram registrados com a “Cartografia afetiva da Epistemologia do Sul”, surgida a partir do
pensamento de Santos e Meneses (2013).
Ao embarcar na viagem rumo a Epistemologia do Sul sentimentos fluíram. É
como se minha ancestralidade tivesse tão perto em uma conexão ecoando
a sua voz no poo do navio. Trago os versos da escritora preta Conceição
Evaristo para vociferar o que sinto (Vozes mulheres). uma ideia abissal
que nos separa do conhecimento, da ciência, da relação de gênero.
Poderíamos enegrecer a ciência popularizando-a, permitindo inclusão e
respeito aos conhecimentos tradicionais. Como traduzir em linguagem
acessível ao conhecimento? impressão que este texto foi produzido para
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uma elite branca (para poucos) o que já vem sendo construído culturalmente.
[...] ao pensar no silenciamento de tantas mulheres que adentraram a ciência
e não tiveram oportunidade e tantas outras que nem tiveram conhecimento
do que seria a Ciência, como minha tataravó, bisavó, avó e mãe. uma
colonialidade e hegemonia do poder que toma conta do nosso existir. Não é
somente o poder do Sul sobre o Norte, mas de todos os outros poderes que
nos atravessam (elaborada pela autora).
Com a escrita apresentada, verifica-se que as epistemologias do Sul vêm com a visão
de questionar saberes que foram suprimidos, denunciar a supressão dos conhecimentos
dominantes e do sistema que sustenta a hierarquização epistêmica moderna, que sempre
procurou excluir e ocultar povos e suas culturas por meio do capitalismo e colonialismo. Vem
denunciar que ciência é essa que é válida e que precisa reconhecer que outros
conhecimentos que por muito tempo foram silenciados e que precisam superar o modelo
opressor do pensamento abissal, que divide o mundo, que também são validos. Ela vem como
propósito de captar um processo que nasce na própria luta e no viver da luta contra a opressão
e questionar esse conhecimento que se ensina e aprende nas universidades, que tem como
fundamento a matriz eurocêntrica.
Assim, a ecologia de saberes se propõe a ser uma possibilidade que privilegia o
pensamento pluralista e propositivo, que permite que os conhecimentos se cruzem e busquem
o reconhecimento dos limites (internos e externos) da ciência, de modo a favorecer a
credibilidade para os conhecimentos não científicos.
Na colonialidade do ser, Maldonado-Torres (2013) apresenta a relação do viver e do
existir, para trazer uma aproximação sobre os efeitos da colonialidade na vivência dos sujeitos
denominados inferiores. Estes que são apresentados pela sociedade de uma forma destrutiva.
Assim, a modernidade passa a encobrir a colonialidade, escondendo a relação entre
modernidade e a Europa. Aqueles que relacionam o discurso da modernidade em sua fala
tendem a direcionar em uma perspectiva universal, totalmente separada do significado
geopolítico do local onde o sujeito fala.
Nesse sentido, percebe-se que conexão entre a modernidade e a experiência
colonial, pois como explica Madonado-Torres (2013, p. 345) “Foi com base destas reflexões
sobre a modernidade, a colonialidade e o mundo colonial que surgiu o conceito de
colonialidade do ser. A relação entre poder e conhecimento conduziu o conceito do ser”.
Ainda faz referência que o ser colonizado poderia ser melhor definido como um ser
condenado da terra, pois [...] a colonialidade do ser introduzirá a questão do ser colonizado
ou condenado” (p. 353). Neste sentido passam a discriminar as pessoas e pegam como alvo as
comunidades tradicionais. Ainda para o autor “A lógica da colonialidade ajudou não a
interpretar os ataques terroristas com actos de guerra, mas também a conceder a um líder
político, a autoridade moral para traçar no mapa o eixo do mal” (p. 361).
Na escrevivência inspirada a partir de Maldonado-Torres (2013), apresentamos
fragmentos sobre a colonialidade do Ser:
Condenados para quê, quem determinou a condenação?
O esperançar quase não faz parte da essência
Que foi desconstruída em nossas raízes.
Sem dúvida que o racismo é estrutural
Como enfatiza Maldonado-Torres
Esteve sempre impregnado do colonialismo até à colonialidade
Vamos transgredir fronteiras, minha gente
Resgatar a nossa essência
De um povo livre
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Cheio de marcas sim
Mas, com forças para lutar
E mudar o rumo de nossa história
Basta de sermos condenados (as)
Povo busque se libertar da domesticação do capitalismo, da economia de
mercado e dos ideais liberais de liberdade e igualdade.
E a avance nas fronteiras geopolíticas
Que operam no conhecimento decolonial e antirracista (elaborada pela
autora).
É possível compreender nos versos apresentados que os problemas vivenciados pela
humanidade têm suas raízes na colonialidade. Ela não é um efeito colateral da modernidade,
algo que poderia ser considerado como extinto sem levar em consideração o cerne da
modernidade, pois se vai além da modernidade instrumental e pode ter sido influenciada pelas
concepções imperiais de espaços. “Ser e império estão intimamente ligados na medida em
que, mais do que ser limitados, o limitadores” (MALDONADO-TORRES, 2013, p. 349).
Necessitamos transgredir as fronteiras da colonialidade do ser e os seus
desdobramentos eurocentrados dentro do universo da modernidade e entender como esta
contribui com as raízes do poder imperial como ponto de partida de como funciona as
categorias de condenação que ainda hoje faz a humanidade pagar pela sua própria
vulnerabilidade.
Ao fazer uma relação do que foi apresentado com a Epistemologia do Sul, é possível
compreender que as raízes históricas deixaram cicatrizes profundas nas minorias que estão,
por muito tempo, desumanizadas. Como aborda Fiori (1991, p. 42): “Não é uma experiência
vazia do ser como ato, ato de ser, de cada ato do nosso espírito, em que ele faz e se refaz, e se
objetiva”. Uma reflexão que instiga a humanidade a pensar na valorização do ser, enquanto
ser e não enquanto ter. O capitalismo perverso nos cega, nos isola do mundo, nos torna
inimigos uns dos outros, fazendo com que cada pessoa passe a se dar bem em tudo que
realiza, sem se preocupar com quem está à margem. Neste sentido, é preciso sair de si e olhar
o mundo para que se possa esperançar, como nos convoca Freire (1987). Assim, sair do que
nos paralisa. Ir em busca de transformação. Insiste Fiori (1991, p. 45), “Não ficar no feito,
mas buscar a fazer o que faz efeito”.
Um exercício constante sobre a práxis é poder realizar uma autorreflexão. Algo que
até parece impossível no mundo acelerado. Isso nos faz pensar em Krenak (2020) quando
afirma que basta apertar um botão para a humanidade desaparecer. Em um mundo acelerado
o se conta de si e nem do que acontece à sua volta. Cada pessoa fica tentando se
justificar que está fazendo a sua parte. Um ato egoístico de continuar no seu isolamento
social, fugindo da luta coletiva. Para modificar essa situação se faz necessário, conforme Fiori
(1991, p. 45): Reflexão no sentido de distanciamento de si mesmo e voltar a si mesmo,
através do reconhecimento das outras consciências e do mundo comum a estas consciências”.
Mas, vale enfatizar, como ainda afirma o autor, que “A história se produz no encontro das
duas linhas: a da transcendência e a da raiz” (FIORI, 1991, p. 47).
Como fio que tece a “colcha de retalhos”, inspirada em Fiori (1991), surgiram novas
escrevivências permeadas pela subjetividade do viver que faz um convite a todas as pessoas a
pensar em uma mudança de postura.
Um convite provocador
Sair-se de si
Compreender a importância do ser
Um tanto contraditório
No mundo capitalista perverso
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Que prevalece a colonialidade do ter e do saber
No que vale é a meritocracia
E o ser desfalece com as minorias
Fiori convoca
“Não ficar no feito, mas buscar a fazer o que faz efeito”
O que faz efeito para uma pessoa pode não fazer para outro
Mas, se pensar coletivo, construir COM
a transformação é possível acontecer
É preciso sair de si e olhar o mundo
para que se possa esperançar
compreender a energia que passa pelo fio condutor
Ligar a humanidade pela história que se faz e se refaz
Fazer história
“Autodesvela-se como práxis significante (elaborada pela autora).
As escritas poéticas fazem compreender o percurso do fio condutor para estabelecer a
relação do mundo com a história para verificar os desvios, os equívocos e as errâncias.
Adentrar à raiz de cada pessoa. Revisitar os começos históricos do pensar. Neste sentido,
Fiori (1991) nos faz um convite: “Reaprendizagem de ver o mundo, de vê-lo pelo reverso, nas
suas raízes, na sua profundidade e na sua verdade” (p. 37). E nesse caminho é percebida a
importância do ser. Como instiga ainda o autor, O ser é valor absoluto (p. 39). Parece
contraditório ao olhar para modernidade capitalista, na qual prevalecem a colonialidade do ter
e do saber em detrimento da colonialidade do ser.
Dussel (2016) convoca a humanidade a sair da visão ingênua da realidade e buscar a
sua libertação. Uma proposta que faça refletir com “A filosofia da libertação como filosofia
crítica cultural precisava gerar uma nova elite cuja ilustração iria se articular aos interesses do
bloco social dos oprimidos” (p. 53). Para isso, nasce a força da Cultura Popular. Ela como
ainda cita o autor, vem da resistência do oprimido: “A cultura, como cultura popular, longe de
ser uma cultura menor, é o centro menos contaminado e radiante da resistência do oprimido
contra o opressor [...]. Para criar algo de novo, de se ter uma palavra nova que irrompa a
partir da exterioridade. [...] (p. 53). O que vale ressaltar é que a cultura popular não é
populista: “O popular, no entanto, seria um setor social de explorados ou oprimidos de uma
nação, mas que guardaria também certa externalidade” (p. 56).
Nesta direção, é necessário romper com o que é imposto pela sociedade e pelos meios
de comunicação. Dussel (2016) enfatiza que [...] faz-se a crítica à posição ingênua que
definia o diálogo entre culturas como possibilidade multicultural simétrica, em parte
idealizada e na qual a comunicação parecia ser possível para os seres racionais” (p. 59).
A modernidade seria, para o paradigma mundial, um fenômeno que se desvela como
centro e periferia”. Em que [...] a Modernidade (o capitalismo, o colonialismo, e o primeiro
sistema-mundo) não é contemporânea à hegemonia global da Europa desempenhando um
papel de centro do mercado no que diz respeito às culturas restantes” (DUSSEL, 2016, p.
61). A partir dos pressupostos da cultura é preciso fazer autocrítica. A própria modernidade
propicia instrumentos para essa reflexão da sua própria tradição, o que propõe como
alternativa buscar um projeto como estratégia de superação, um projeto transmoderno
(DUSSEL, 2016).
Dussel (2003) provoca um debate com o foco no princípio da ética material,
interligando a dinâmica do capitalismo e o que realmente é necessário fazer para harmonizar
as relações da humanidade com a natureza, levando em consideração o contexto histórico
marcado cruelmente com a sociedade excludente.
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Na circularidade do saber Dussel (2016) faz um convite a percorrer a história
filofica em um processo de libertação. Assim, apresentamos as escrevivências que nasceram
imbricadas no ser, mergulhadas na cultura, na identidade.
A partir da cultura
Temos uma alternativa
Fazer autocrítica.
Aproveitar da modernidade
buscar um projeto como estratégia de superação
Como diz Dussel: para resistir, é necessário amadurecer.
Libertar-se do hiato entre centro e periferia
Assumir a cultura popular
A libertação acontece coletivamente
Com e pelos grupos oprimidos
Quebrar o paradigma do eurocentrismo
Das falácias desenvolvimentistas
Assumir o que se é
Evitar buscar um herói civilizador
Que só ajudará a nos prender (elaborada pela autora).
Os versos nascem da trajetória de compreender que a racionalidade moderna foi um
mote civilizador que legitimou a cultura eurocêntrica, como superior, consistindo segundo
Dussel (2016), no mito da modernidade. O eurocentrismo da modernidade trouxe como
resultado um conflito entre a diversidade mundial e a hegemonia da Europa, em que “O
diálogo intercultural havia perdido sua ingenuidade e passou a ser compreendido como
sobredeterminado por todo o período colonial” (p. 52).
Um dos aspectos que nos incita a sairmos da intersubjetividade formal e reconhecer a
presença do/a outro/a como igual, não só no argumento, mas como ponto de partida e
fundamento de toda a discussão. Isso provoca uma consciência crítica, transformada em
escrevivências apresentadas no trecho a seguir:
Busca na ética material,
Harmonizar as relões com a natureza,
Mas, pressiona muito mais
O que fazer?
Libertar os (as) excluídos (as)
da fome, da miséria e de tantas outras formas de morte
Romper com a totalidade
Como possibilidade de sobre-vivência
Despertar a consciência crítica.
Co-solidário com toda a humanidade.
Um convite é feito
Questione, levante a bandeira,
Subverta a ordem do sistema vigente.
Basta de ficar de braços cruzados
É preciso reconstruir a verdade
Libertar o(a) oprimido(a)
Caminhar junto com
Criar novas formas de pensar a própria existência
Assumir a responsabilidade pelo outro.
Superar a realidade excludente (elaborada pela autora).
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Neste sentido, Dussel (2003) utiliza-se da ética material da vida como tese primordial
de defesa da vida. A ética material significa se sobrepor ao sistema capitalista que produz,
reproduz e desenvolve toda a possibilidade de morte. Para a comunidade periférica que o
tem acesso aos bens materiais e aos bens simbólicos a perspectiva da vida passa a se exaurir.
Assim, o autor nos propõe a ética material da vida, principalmente se a vida em sua
materialidade e corporalidade é negada, devido à fome, miséria, violência, desprezo e tantas
outras formas de morte. É preciso questionar, levantar bandeira, subverter a ordem do sistema
vigente. Dussel (2003, p. 25) ainda enfatiza que [...] necessitaremos reconstruir a verdade de
uma ética material (onde a destruição ecológica e a pobreza sejam detectadas como problemas
éticos em si mesmos) e articulá-la convenientemente a uma moral formal (a partir da qual se
poderá proceder consensualmente)”.
NA PESQUISA O CAMINHO SE FAZ CAMINHANDO
Na caminhada para pesquisar é preciso aprender a decolonizar as metodologias e
práticas de campo, levando em consideração a própria concepção do que seja uma pesquisa
científica. Para Catherine Walsh (2017), a decolonização reconhece e valoriza os diferentes
conhecimentos locais que foram subjugados pelo colonialismo. Isso demanda desafiar a
proposta de que o conhecimento ocidental é superior e possibilitar espaço para a diversidade
de formas de compreensão do mundo.
Assim, ao realizar pesquisas com os diferentes grupos sociais marginalizados e
excluídos é possível verificar que isso requer profundidade, atenção e um cuidadoso estudo
filofico. Ao aprofundar no estudo filofico é preciso buscar inspirações para mantermos
vivo o esperançar na vida das pessoas, contribuindo para que o filosofar seja cada vez mais o
jeito dos povos e mais solidário. Outro ponto fundamental que precisa ser levado em
consideração é que os conceitos filosóficos são primordiais para se ter compreensão e
exatidão sobre o que será investigado.
Como pesquisador/a, quando passamos a agir de maneira ética com os/as parceiros/as
de nossa pesquisa? É um ponto de partida relevante, pois de acordo com Dussel (2003),
age de maneira ética quem luta para libertar o oprimido, aquele que tem fome, o que o
possui privilégios, os que se encontram às margens da sociedade. É necessário caminhar junto
com os/as excluídos/as, as minorias, para criar novas formas de pensar a própria exisncia. É
uma responsabilidade de compreender como se estabelece o processo de dominação e de
libertação e passar a assumir a responsabilidade por outrem, pelo próximo, pelos demais seres
vivos, semelhantes ou o. Para isso, é preciso buscar formas de superar a realidade
marginalizante e excludente que será um desafio constante. No entanto, essa caminhada não
precisa e não pode ser realizada sozinha, mas em um projeto ético-solidário e comunitário.
Em cada trecho apresentando são as palavras que nos levam a compreender o sentido
que realizamos com o mundo. Nele, por vezes, nem percebemos o papel que passamos a
desempenhar. Freire (1987) nos faz refletir sobre as entrelinhas da Pedagogia do Oprimido.
As escrevivências em forma de acróstico se interligarão ecoando a voz das pessoas oprimidas
e com elas estaremos finalizando a “colcha de retalhos” com traços e cores de uma verdade
transpassada por opressão e libertação.
Palavra como diálogo, comportamento, práxis
Atua como um ato político
Leva os traços da cultura, testemunhando a sua história.
Alfabetizar, dizer a sua palavra criadora de cultura
Voltar-se para o que aprisiona a realidade
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Reencontro e reconhecimento de si mesmo
Anarquizar a sectarização que castra e aliena
Consciência no mundo.
Os homens/mulheres não se humanizam, senão humanizando o
homem/mulher
Nessa relação dialógica ter a bravura de dizer a sua palavra
Ser no mundo e com o mundo ter na voz a palavra que liberta
Comunicar-se. Expressar, expressando o mundo
Integrando o aprendizado de dizer a sua palavra como sujeito da sua história
Ênfase no conhecer a realidade para transformá-la,
Na instauração da consciência reflexiva da cultura.
Tendo a essencial intersubjetividade.
Intervir como exteriorização da práxis
Zurrando a libertação do oprimido
Assim, ter a palavra para revolucionar (elaborada pela autora).
Nesse sentido, Fiori (1987) enfatiza Freire (1987), como [...] um pensador
comprometido com a vida: não pensa ideias, pensa a existência” (p. 5). Isso vem ao encontro
dos filósofos estudados, que constroem seus discursos a partir da valorização da vida, como
Krenak (2020), Dussel (2003; 2016) e Quijano (2005). Ao se pensar na vida é preciso dar
passos na direção de uma educação libertadora que nasce do diálogo e da possibilidade do
oprimido de biografar-se, existenciar-se e historicizar-se para que o/a oprimido/a tenha como
ponto de partida [...] aprender a dizer a sua palavra” autônoma, como exteriorização da
práxis” (FIORI, 1987, p. 10). O oprimido ao aprender a dizer a sua palavra partilha da
comunhão humana que se constitui, passando a humanizar o mundo, “humanizando-se”.
Para a plenificação desse processo, a Consciência” surge como necessidade de ser no
mundo e com o mundo, por existir uma “[...] intrínseca correlação entre conquistar-se, fazer-
se mais si mesmo, e conquistar o mundo, fa-lo mais humano” (FIORI, 1987, p. 12). A sua
consciência passa a ser a própria consciência do mundo, em que a pessoa se reencontra como
sujeito e se permite passar por um processo de libertação. Assim, pensar e escrever a
educação como prática da liberdade, libertando-se de toda opressão, uma vez que, ao
alfabetizar-se passa a reverberar a palavra como criadora da cultura. Nesse reencontro e
reconhecimento de si, o ser humano “[...] se expressa convenientemente quando colabora
com todos na construção do mundo comum - só se humaniza no processo dialógico de
humanização” (FIORI, 1987, p. 10).
Um diálogo que impulsiona a criticidade que somente a partir do conhecimento da
realidade poderá contribuir para a liberdade. Assim, “[...] a pedagogia do oprimido, que
implica numa tarefa radical cujas linhas introdutórias pretendemos apresentar neste ensaio e a
própria leitura deste texto não possam ser realizadas por sectários” (FIORI, 1987, p. 14). Para
o citado autor, o sectarismo é castrador, fanático e alienante, enquanto que o radical não pode
ficar passivo diante da violência do dominador. Que posição queremos tomar enquanto
pesquisador/a? Nesse sentido, os versos das escrevivências provocam uma reflexão.
Como se libertar do oprimido?
Uma práxis que liberta
Deixar ouvir todo gemido
Do oprimido que desperta
Para o viver coletivo
Uma utopia sonhada
Em cada lição
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Seja realizada
Ao desejada
Libertação (elaborada pela autora).
Freire (1987) ressalta o que seria necessário para que os oprimidos possam sair da
situação opressora por meio de uma pedagogia que humaniza. Isso significa pensar em um
processo educativo como caminho para uma transformação social. Como cita o autor “[...] é
necessário que os oprimidos, que não se engajam na luta sem estar convencidos e, se não se
engajam, retiram as condições para ela, cheguem, como sujeitos, e não como objetos, a este
convencimento(p. 30).
No caminho pela libertação há a dialética entre opressor e oprimido, pois é confortável
a condição estabelecida pela classe opressora, em que se manter sob o controle dos oprimidos
significa ter uma vida normal. Quando movimentos de rompimento desta lógica, a classe
dominante se sente incomodada, ameaçada pelo fato de que a pedagogia do oprimido é a luta
por igualdade e sem privilégios de classe. Afirma Freire (1987, p. 25): “[...] para os
opressores, o que vale é ter mais e cada vez mais, à custa, inclusive, do ter menos ou do nada
ter dos oprimidos. Ser, para eles, é ter e ter como classe que tem”. Assim, não basta o
oprimido se libertar é preciso que o opressor se humanize e supere sua contradição.
A educação bancária favorece a manutenção da classe opressora que perpassa na vida
do oprimido, que para a sua libertação seria necessária uma educação problematizadora como
fundamental para que a consciência pudesse ser despertada. Freire (1987, p. 17) destaca que
O grande problema está em como poderão os oprimidos, que hospedam o opressor em si,
participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação. E
afirma ainda, sobre a educação bancária que: [...] refletindo a sociedade opressora, sendo
dimensão da ‘cultura do silêncio’, a ‘educação’ ‘bancáriamantém e estimula a contradição
(FREIRE, 1987, p. 34). Para Freire (1987), a concepção causa necrofilia na pessoa, pois
Nutre-se do amor à morte e não do amor à vida” (p. 37).
Na trajeria do viver no meio das contradições e da marginalização das pessoas, é
preciso esperançar, com vontade de transformar a realidade opressora. As escrevivências
inspiradas em Freire (1987) nos levam a pensar sobre o caminhar rumo à libertação.
Um processo libertador
Parte do lugar do outro
Compreendendo a sua dor,
Dentro do sentido cultural, social e político
Do que há nas palavras
E nas entrelinhas
Como um indivíduo crítico.
Falar é o primeiro passo
Para assumir o protagonismo no mundo
Chega de descompasso
Na superação do pensar ingênuo
De refletir a prática sem teoria
Que fica somente o praticismo
O que fazer?
Ouça o que Freire tem a dizer
Ter um diálogo sem romantismo da realidade,
Buscar a transformação
Um diálogo que gera conflito, desconforto.
Um diálogo de ideias,
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um ato político de libertação.
Mas, é preciso romper a prática antidialógica
Com uma práxis antagônica
Da elite dominadora
Que vem com sua lógica
De manter a opressão (elaborada pela autora).
Nos versos, a educação é pautada na prática da liberdade, tendo como elemento central
a dialogicidade. A práxis nasce como caminho para que possa ocorrer a transformação social.
Um diálogo sem uma perspectiva romântica da realidade, mas transformadora, que gera
conflito, desconforto, que impulsiona mudança. Um diálogo de ideias. Falar é o primeiro
passo para assumir o protagonismo no mundo como um ato político. Pensar a prática sobre a
prática descontextualizada do viés potico, econômico e social é uma abordagem morta, é
vazia. É fundamental desnaturalizar a opressão. Portanto, a educação sozinha não transforma
a realidade. Como Freire (1987, p. 49) enfatiza: O que temos de fazer, na verdade, é propor
ao povo, através de certas contradições básicas, sua situação existencial, concreta, presente,
como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta, não no risível
intelectual, mas no nível da ação”.
Freire (1987) convoca a dizer as palavras “com” os/as outros/as, promovendo um
diálogo que o pode se esgotar entre EU e TU. Este deverá ir além, materializando-se por
todas as pessoas no momento de ouvir e falar de maneira problematizadora, humanística e
crítica. Cada pessoa deve assumir-se enquanto sujeito histórico, levando em consideração que
a relação dialógica é de risco também, por instigar a apropriação crítica da realidade e o
domínio do conteúdo para dialogar sobre ele a partir da situação concreta do que vive.
CONSIDERAÇÕES
Neste ensaio, vislumbramos que o encontro respeitoso com a comunidade com a qual
se pretende junto pesquisar, associado a um referencial trico compatível com o sul
epistemológico, é um ato de resistência, a partir da exterioridade, e ao mesmo tempo, é uma
escolha potica, entendendo esse filosofar como processo libertador.
Nesse processo, é fundamental entender que o viver é primordial na existência e, ao
mesmo tempo, compreender como se estabelecem as relações de poder coloniais têm
repercussões na sociedade moderna, influindo nas configurações econômicas, no racismo
ambiental e estrutural, na colonialidade do poder e do saber. Esses fatores têm contribuído
para a naturalização de práticas de dominação.
A ecologia de saberes se apresenta como uma possibilidade que privilegia o
pensamento pluralista e propositivo, permitindo que os conhecimentos se cruzem e busquem
o reconhecimento dos limites (internos e externos) da ciência, de modo a favorecer a
credibilidade dos conhecimentos não científicos.
É preciso transgredir as fronteiras da colonialidade do ser e os seus desdobramentos
eurocentrados. Nesse movimento social, a humanidade faz história e passa a descobrir-se
diariamente, não por um biologismo ou psicologismo qualquer, mas pela imersão dos seus
valores. Portanto, as pessoas passam a compreender a energia que percorre o fio condutor
capaz de conectar a humanidade pela história que se faz e se refaz no andar itinerante. No
decorrer desse caminhar, é preciso enfrentar diferentes desafios, muitas errâncias. Trata-se de
uma viagem que não terá ponto de chegada, mas somente de partida.
Como se perceber como oprimido/a? É fundamental superar essa relação opressor/a-
oprimido/a para conseguir se libertar. Mas como, se muitas vezes nem se compreendem como
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Francinalda Maria Rodrigues da Rocha
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 196-210, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
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oprimidos/as? Pesquisar se torna um ato político ao problematizar a realidade e ao assumir o
protagonismo na luta antidialógica!
REFERÊNCIAS
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estudá-la então? Motricidades: Rev. SPQMH, v. 6, n. 2, p. 140-151, 2022. Disponível em:
https://doi.org/10.29181/2594-6463-2022-v6-n2-p140-151. Acesso em: 20 mar. 2023.
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