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Conversas sobre hip-hop
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 238-250, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p238-250
desempregado / O negro na faculdade, a ajuda para o viciado / Somos a
mulher denunciando a violência doméstica / Somos o preso que sonha estar
longe da cela / Somos a militância em ação / Nos unindo pra fazer revolução
[...] / Somos a liberdade de expressão / Reviravolta, consequência / Somos,
nós somamos, somos nós, a Resistência (SILVA, 2015, n.p.).
Vê-se que a cidade pacificada pelo Hip-Hop, no entendimento destes sujeitos, não
exclui a cidade litigiosa, da atitude combativa contra o sistema. Pelo contrário, parece existir
uma pressuposição recíproca entre combate travado contra este e a consecução daquela. A
cidade-sistema, mercantil e controlada, é a cidade desigual e racista; a cidade que segrega,
que mercantiliza o medo, como em Correndo risco: “De rolê, pelas ruas no centro da cidade /
Coração de pedra pra não chocar com a realidade / De todos os lados, prédios, condomínios,
muros e grades / Pessoas, são todas iguais, mas quem será de verdade? / Ruas ordinárias,
esquinas solidárias, vendem o alívio” (SILVA, 2015, n.p.) e Quando o sol se vai, do MC
Lincoln Rossi:
A city se enfeita e chama pronta pra seduzir / Com luzes artificiais pra
enganar e iludir / O clima fresco, convidativo, maqueia o perigo / E pode
surpreender quem vaga nas ruas distraído / [...] / No turno noturno é bom
conhecer bem onde cê tá pisando / Pra não cruzar com quem espera a vitima
passar / Muquiado onde nem a luz do poste pode iluminar / Ou pra não ser
oprimido, se sentindo traído / Pela luz do giroflex quando for confundido / A
noite é assim esconde mil tretas por trás (ROSSI, 2017, n.p.).
A partir daí, envolto num sentido geral de rebelião, é possível identificar um ideal de
engajamento que articula arte e política, a favor da “superação” deste estado de coisas
vigente. Na continuidade de Correndo risco: “Entre discos e livros, colocando a vida em risco
/ É por um amor maior a tudo isso eu me dedico [...] Mas eu ainda tô vivo, cheio de
disposição / Pra lutar, pra mudar algo nesse mundo cão”. Nessa chave, os manos parecem
conceber a possibilidade de sua integração, no quadro de valores da sociedade em geral, como
condicionada à construção de uma nova ordem, correspondente aos ideais de paz, justiça e
igualdade. Como transparece em Introduzindo ideias:
Entre conformado e revoltado com o sistema há um preço / A pagar, ironia
do destino, é assim mesmo, quem sabe? / Vou seguindo com meu modo de
viver, diferente chave / Quem sabe um coletivo, unido, com nosso próprio
hino / Como Kant imaginou, universal, sem mortos nem feridos / Mas digo,
pra que não exista dor, tem que ser sem dinheiro / Sem preconceito, desde o
princípio, tudo repartido ao meio (SILVA, 2015, n.p.).
Em chave aparentemente oposta, “[...] quando se quer substituir a condução política
dos litígios pelo tratamento gestionário de problemas vê-se reaparecer os conflitos sob uma
forma mais radical, como impossibilidade de coexistir, como puro ódio do outro”
(RANCIÈRE, 1996, p. 380): “problemas” desde os tempos de escola, nas brincadeiras de rua
e nos rolês da adolescência. É na afronta que muitos desses jovens encontram a postura que
lhes parece mais efetiva para afirmarem seus pertencimentos e modos de ser, como na
composição Conjuntura periférica, na qual considera que “Toda ação tem reação, o efeito é
bumerangue / As pedras que vocês jogaram, voltam como tsunami” (SILVA, 2015, n.p.).
Com “[...] a mente armada até os dentes”, como em Resistência, (SILVA, 2015, n.p.), a
truculência que os rappers endereçam ao sistema parece devolver aquela que o mesmo
sistema lhes dispensava. Versos como os de Capitalismo Selvagem, “Trabalhador, estudante,
chamado pelo opressor de ladrão” (SILVA, 2015, n.p.), como os de Resistência, “Aí cê liga