v. 7, n. 3, p. 238-250, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 238-250, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p238-250
Conversas sobre hip-hop:
parceria, solidariedade, enfrentamento e resistência
Hip-hop conversations: partnership, solidarity, confrontation and resistance
Conversaciones sobre hip-hop: asociación, solidaridad, confrontación y resistencia
GIORDANO BARBIN BERTELLI
1
INSTITUTO FEDERAL DE SÃO PAULO, IFSP, SÃO CARLOS-SP, BRASIL
RESUMO
As reflexões presentes nesse ensaio decorrem do acompanhamento de rotinas e de conversas, realizadas no ano
de 2018, sobre o movimento Hip-Hop em um município do interior do estado de São Paulo, tendo como objetivo
compreender os significados construídos e mobilizados nas interações. A identificação de discursos e condutas
que orbitam em torno de núcleos de sentido tais como parceria, solidariedade, enfrentamento,
“resistência”, permite apontar para uma dinâmica associativa que compõe um tecido social ordenado por
relações predominantemente horizontalizadas e ligada à constrão de uma imagem litigiosa da cidade, em que a
espacialidade ativada por práticas lúdicas e contestatórias descentram e tencionam a ocupação e o uso
hegemônico dos espaços.
Palavras-chave: Cultura. Marginalização. Protagonismo Comunitário.
ABSTRACT
The reflections present in this essay result from monitoring routines and conversations, carried out in 2018,
about the Hip-Hop movement in a municipality in the interior of the state of São Paulo, with the objective of
understanding the meanings constructed and mobilized in interactions. The identification of discourses and
behaviors that orbit around cores of meaning such as “partnership”, “solidarity”, “confrontation”, resistance”,
allows us to point to an associative dynamic that makes up a social fabric ordered by predominantly horizontal
relationships and linked to the construction of a contentious image of the city, in which spatiality activated by
playful and contestatory practices decenters and tensions the occupation and hegemonic use of spaces.
Keywords: Culture. Marginalization. Community Protagonism.
RESUMEN
Las reflexiones presentes en este ensayo resultan del seguimiento de rutinas y conversaciones, realizadas en
2018, sobre el movimiento Hip-Hop en un municipio del interior del estado de São Paulo, con el objetivo de
comprender los significados construidos y movilizados en las interacciones. La identificación de discursos y
comportamientos que orbitan en torno a núcleos de significado como asociación”, “solidaridad”,
“confrontación”, “resistencia”, permite señalar una dinámica asociativa que configura un tejido social ordenado
por relaciones predominantemente horizontales y vinculado a la construcción de una imagen polémica de la
ciudad, en la que la espacialidad activada por prácticas lúdicas y contestatarias descentra y tensiona la ocupación
y el uso hegemónico de los espacios.
Palabras clave: Cultura. Marginación. Protagonismo Comunitario.
1
Professor do IFSP São Carlos. Líder do Núcleo de Investigações Progressistas em Educação (NINPED/IFSP).
E-mail: giordano.bertelli@ifsp.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8906-0389.
239
Conversas sobre hip-hop
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 238-250, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p238-250
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Mas esse rap não é aquele negócio [...] que fala palavrão, de drogas...
Não, pelo contrário, a ideia das letras é até chamar a atenção para os riscos
que estão envolvidos nessas coisas.
Ah... Porque a polícia passa lá e aí já viu...
O diálogo que inicia este texto faz parte da lembrança de uma conversa que tive com
um dos gestores municipais responsáveis pela emissão de alvarás para eventos culturais em
espaços públicos em um município de médio porte do interior do estado de São Paulo. Essa
conversa ocorreu enquanto buscávamos autorização para realizar o lançamento de um livro
em um espaço público da cidade, onde planejávamos incluir uma apresentação de Hip-Hop.
Os estereótipos das expressões musicais da periferia ostentados por meu interlocutor
assinalam uma nica constante na experiência dos atores engajados na promoção de eventos
desse nero. O mesmo se pode dizer a respeito das premissas latentes da objeção,
aparentemente apriorística, assim como da visão homogeneizante das diferentes
manifestações culturais comumente associadas às periferias urbanas. Em mais de uma ocasião
ouvi relatos a respeito das dificuldades encontradas para a realização de eventos relacionados
ao Hip-Hop em uma das praças centrais da cidade: entraves burocráticos e incompreensão
tanto da parte de agentes governamentais quanto de possíveis patrocinadores.
Relatos geralmente acompanhados de uma percepção aguçada do contraste com o
tratamento dispensado pelos mesmos gestores a outros gêneros musicais, que aparentemente
o encontram os mesmos entraves de acesso ao espaço público, de diálogo e de fomento às
suas atividades. Seja por finalidades de divulgação de seus respectivos trabalhos, seja por
objetivos ligados à militância ou simples lazer, as formas de sociabilidade e a expressividade
estética mobilizadas por meus interlocutores parecem constantemente depreciadas, por parte
de habitantes, agentes governamentais e empresários da cidade hegemônica, entendida como
agenciamento socioespacial tomado dentro de parâmetros analíticos que consideram:
[...] de um lado, as lógicas e circuitos de mercado, e as tendências de uma
expansiva mercantilização dos espaços e territórios, mas também das formas
de vida, modos de ser e habitar a cidade, em seus contextos de referência; de
outro, as formas de controle inscritas na produção de gestão desses espaços
(TELLES, 2015, p. 24).
Tais circunstâncias parecem desenhar uma problemática eminentemente potica, pois
[...] aquele que recusamos contar como pertencente à comunidade política, recusamos
primeiramente ouvi-lo como ser falante. Ouvimos apenas ruído no que ele diz (RANCIÈRE,
1996, p. 373).
Neste ponto, cumpre observar que a cidade hegemônica pode ser pensada como uma
modulação particular daquela lógica mais geral de ordenamento que Rancière (1996)
chamaria polícia:
[...] o conjunto dos processos pelos quais se operam a agregação e o
consentimento das coletividades, a organização dos poderes e a gestão das
populações, a distribuição dos lugares e as funções e os sistemas de
legitimação dessa distribuição. Proponho dar a esse conjunto de processos
um outro nome. Proponho chamá-lo polícia, ampliando portanto o sentido
habitual dessa noção [...] Nem por isso o que chamo polícia é simplesmente
um conjunto de formas de gestão e de comando. É, mais fundamentalmente
o recorte do mundo sensível que define, no mais das vezes implicitamente,
as formas do espaço em que o comando se exerce. É a ordem do visível e do
240
Giordano Barbin Bertelli
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 238-250, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p238-250
dizível que determina a distribuição das partes e dos pais ao determinar
primeiramente a visibilidade mesma das capacidades e das
incapacidades associadas a tal lugar ou a tal função (p. 372).
Trata-se de considerar a cidade em sua dinâmica de definição, prescrição e fixação dos
espaços, de suas formas de ocupação e dos sujeitos considerados legítimos a ocupá-los. Por
outro lado, a abjão aparentemente despertada pela sociabilidade e expressividade estética de
meus interlocutores, por sua vez, parece em grande parte devida à irrupção do que o mesmo
autor denominaria política:
Proponho reservar a palavra política ao conjunto das atividades que m
perturbar a ordem da polícia pela inscrição de uma pressuposição que lhe é
inteiramente heterogênea. Essa pressuposição é a igualdade de qualquer ser
falante com qualquer outro ser falante. Essa igualdade, como vimos, não se
inscreve diretamente na ordem social. Manifesta-se apenas pelo dissenso, no
sentido mais originário do termo: uma perturbação no sensível, uma
modificação singular do que é visível, dizível, contável (RANCIÈRE, 1996,
p. 372).
Na medida em que parte de suas práticas de sociabilidade e expressividade estética
implicam o acesso e o uso de espaços urbanos, meus interlocutores movem-se pela presunção
presunçosa, aos olhos do sistema da igualdade entre suas formas de existência
sociocultural e aquelas ostentadas pelos demais grupos que comem o cenário urbano. Ou
seja, nos termos de Rancière, apresentam-se como atores que tomam parte com os demais no
litígio em torno dos limites do mundo sensível que define as visibilidades e discursos que
constituem a cenablica urbana. Reside, aqui, o ponto de conexão entre política e estética:
Existe portanto, na base da política, uma estética [...] É um recorte dos
tempos e dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que
define ao mesmo tempo o lugar e o que esta em jogo na politica como forma
de experiência. A politica ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre
o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das
propriedades do espaço e dos possíveis do tempo (RANCIÈRE, 2005, p. 16-
17).
Os ordenamentos da ordem polícia assim como os movimentos de sua contestação
política operam mediante a mútua inscrição entre o político e o estético: nessa
perspectiva, elaborações estéticas performam configurações políticas, assim como
configurações políticas enunciam e visibilizam elaborações estéticas. Ou seja, os
ordenamentos poticos do mundo público inscrevem procedimentos estéticos, assim como os
ordenamentos estéticos inscrevem procedimentos políticos.
Nesses termos, no que concerne mais de perto aos atores e práticas aqui abordados, é
importante acrescentar:
[...] os rappers, assim como seus manos de quebrada, em decorrência de
estigmas e estereótipos, encontram-se previamente deslegitimados à
coparticipação do espaço político, condição reforçada ainda pelas restrições
de acesso à cidade, decorrentes da segregação urbana e da desigualdade
social, fatores que, somados, tendem a encolher a margem de sua
visibilidade social. Isto é, os estigmas e estereótipos que pesam sobre as
regiões e grupos periféricos o eles mesmos partes inscritas em uma certa
partilha do sensível -, aquela que, no mesmo passo, correlaciona o centro
241
Conversas sobre hip-hop
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 238-250, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p238-250
aos grupos e práticas hegemônicas e relega à periferia a desordem, a
incivilidade e o crime. Uma partilha cujo sistema de evidências
sensíveis [...] opõe as roupas largas, os bonés, blusões e correntes à
vestimenta bem comportada dos playboys e patricinhas, o português
correto à ria de gueto, os barracos aos condomínios (BERTELLI,
2017a, p. 25, grifos do autor).
Os artistas em questão encontram-se imersos em um cenário conflitivo, em que estão
em litígio os sentidos do convívio social e da cultura praticados no cenário urbano, termos que
colocam em jogo, portanto, a própria definição de cidade.
Sendo assim, as reflexões empreendidas neste ensaio partem das relações conflitivas
entre os diagramas de poder e sentidos hegemônicos, inscritos nos usos e configurações dos
espaços da cidade, e as diversas práticas de apropriação e ressignificação de uma multidão de
transeuntes e usuários anônimos (LEFEBVRE, 2008; CERTEAU, 2009). Ou seja, toma-se
por objeto os sentidos de cidade que emergem do processo de associação entre jovens
integrantes do movimento Hip-Hop, engajados em diferentes modalidades de ocupação e uso
do espaço urbano, imprescindíveis e concomitantes à prática de suas atividades de produção e
militância culturais.
O acompanhamento de rotinas e conversas realizadas no ano de 2018 sobre o
movimento Hip-Hop em um município do interior do estado de São Paulo são as fontes
geradoras para as compreensões de significados construídos e mobilizados nas interações
relacionadas ao movimento Hip-Hop.
Os nomes próprios de pessoas e bairros, com exceção dos nomes dos compositores das
letras apresentadas, são ficcionais, sugeridos pelos próprios interlocutores das conversas, os
quais autorizaram a gravação dos áudios das conversas e posterior divulgação acadêmico-
científica.
O enfoque nas letras dos raps
2
produzidos no referido município considera a sua
elaboração poética imersa na sociabilidade vivenciada, que processa discursivamente as
alianças, solidariedades e conflitos intra e entre os grupos (BERTELLI, 2017b), revelando o
jogo de forças em que se inserem (CÂNDIDO, 2006).
ENTRE MANOS: PARCERIA E RESISTÊNCIA
O Hip-Hop come um eixo central na trama das vivências observadas e conversadas.
Enquanto agente catalizador da pacificação da cena cultural vivenciada pelos jovens das
periferias, seu lugar foi o de propiciar o estabelecimento de relações entre atores pertencentes
às suas diferentes quebradas. Ouvi do MC e produtor Magrelo: Foi quando o [MC] JGueto
falou: Mano, is tá tretando por causa de rap?’. Juntou os cara do [bairro] Juracir. Mano,
nóis é de outra quebrada tá tretando por causa de rap pra nada véio? Vamo juntar isso e
fazer um som loco, tá ligado? Um grupo loco’” (conversas, 2018).
Trata-se de uma espécie de narrativa coletiva, fundacional não só em relação ao
movimento como também aos seus modos de territorialização.
Deixando de lado questões relevantes de ordem geracional, de graus de
profissionalização e de moralidades distintas, cumpre observar que os MCs elaboram sua
2
Rap, forma abreviada do inglês rhythm and poetry, em português ritmo e poesia, em referência ao canto
declamatório dos MCs [Masters of Ceremony] e DJs [Disc-Jockey], a partir de trechos de músicas alheias
ou produzidas mediante sintetizadores (BERTELLI, 2017a, p. 23, grifos do autor).
242
Giordano Barbin Bertelli
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 238-250, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p238-250
memória coletiva assinalando a passagem de um cenário deflagrado de tretas entre quebradas
e rappers rivais para um contexto pacificado de alianças e parcerias entre eles. É importante
destacar que os atores atribuem tais mudanças ocorridas na cena ao próprio Hip-Hop. Assim,
os MCs contradizem a versão estatal que atribuem à guerra contra o crime a queda nas taxas
de homicídios observáveis nas periferias durante os anos 2000. Não a mudança partiu de
dentro como o próprio mundo do crime foi um dos principais responsáveis por sua
efetivação (FELTRAN, 2010).
O potencial pacificador do rap opera desde dentro de sua performance artística,
encontrando diversas analogias em seus procedimentos expressivos. Aspecto que podemos
estender também às outras formas de manifestação do Hip-Hop. No plano da expressividade,
a rivalidade é esteticamente processada na forma de duelos/batalhas. Trata-se de uma forma
de interação baseada na suposição mútua de igualdade entre os parceiros, na medida em que
implica na pressuposição recíproca da igual capacidade em fazer uso dos recursos expressivos
oferecidos por um repertório artístico comumente compartilhado.
No plano associativo, a igualdade comparece nas práticas de apoio mútuo, trocas e
intercâmbios pessoais e estéticos, entre artistas e grupos, observados com frequência na cena.
É uma dinâmica que corresponde ao correr-junto, ao somar e fortalecer constantemente
evocados na fala e acionados na associação em torno dos projetos artísticos, da promoção de
eventos e execução de ações. Em tais circunstâncias, a igualdade inscreve-se nas diferentes
possibilidades cujas posses e atividades de cada um possibilitam: cada um ajuda com o que
pode, como afirmam. Essas alianças não se restringem a um mesmo segmento artístico,
envolvendo parcerias entre artistas dos diferentes elementos
3
do Hip-Hop. Dentro do
segmento musical correspondente ao rap, por exemplo, essas práticas chegam mesmo a
suspender a própria noção fechada de grupo.
naquele dia no Festival [realizado em uma das pistas de skate da
cidade], tava tudo junto: Gabriel, Alê, Pelicano; chegou eu e o Carão... oh
mano vão fazer um som junto, nóis aqui cinco, o que vocês acha? ... ah
demorô... eu tenho umas batida sobrando, se vocês curtir alguma nóis
faz. Nisso eles foram em casa, tem auma foto... Mas não era assim, se é
ou não é... [de um grupo ou de outro em particular], nunca foi cara, era as
coisa que ia acontecendo. Eu e o Carão tinha umas música pro segundo
disco. Daí ele foi preso e eu falei: que vocês acham da gente terminar essa
músicas aqui?. Os cara topô. eu tava fazendo tudo em casa. Fiz o logo
do grupo, fiz as base, gravei, mixei, falei: ah meu, eu sou do grupo aí né?”.
eu e o Alê tomamo a linha de frente do bagulho... agora o grupo é um
coletivo mesmo... tem vários grupo, vários cara (conversas, 2018).
A narrativa a respeito do movimento, portanto, evoca um ideal normativo de
integração entre manos que, embora pertencentes a terririos distintos, compartilham de um
mesmo ideário artístico. Ou de uma mesma resistência, como na letra de título homônimo do
MC Guilherme Silva:
Somos a revolta, o batuque do tambor, o atabaque / O Rap que tira o
moleque do craque / Somos a diferença, o contrário do sistema / A solução
para alguns, pra outros o problema / Somos a criança no farol, o trabalhador
3
Além do DJ e do MC, cuja junção compõe o Rap, o Hip-Hop é formado por mais dois elementos: o Break,
estilo de dança caracterizado por movimentos abruptos e descontínuos e o Graffiti, expressão pictórica que toma
os muros e paredes da cidade como superfície de inscrição de imagens e mensagens. Nos últimos anos,
representantes do movimento vêm introduzindo o quinto elemento o Conhecimento.
243
Conversas sobre hip-hop
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 238-250, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p238-250
desempregado / O negro na faculdade, a ajuda para o viciado / Somos a
mulher denunciando a violência doméstica / Somos o preso que sonha estar
longe da cela / Somos a militância em ação / Nos unindo pra fazer revolão
[...] / Somos a liberdade de expressão / Reviravolta, consequência / Somos,
nós somamos, somos nós, a Resistência (SILVA, 2015, n.p.).
Vê-se que a cidade pacificada pelo Hip-Hop, no entendimento destes sujeitos, o
exclui a cidade litigiosa, da atitude combativa contra o sistema. Pelo contrário, parece existir
uma pressuposição recíproca entre combate travado contra este e a consecução daquela. A
cidade-sistema, mercantil e controlada, é a cidade desigual e racista; a cidade que segrega,
que mercantiliza o medo, como em Correndo risco: De rolê, pelas ruas no centro da cidade /
Coração de pedra pra não chocar com a realidade / De todos os lados, prédios, condomínios,
muros e grades / Pessoas, são todas iguais, mas quem será de verdade? / Ruas ordinárias,
esquinas solidárias, vendem o alívio (SILVA, 2015, n.p.) e Quando o sol se vai, do MC
Lincoln Rossi:
A city se enfeita e chama pronta pra seduzir / Com luzes artificiais pra
enganar e iludir / O clima fresco, convidativo, maqueia o perigo / E pode
surpreender quem vaga nas ruas distraído / [...] / No turno noturno é bom
conhecer bem onde cê tá pisando / Pra não cruzar com quem espera a vitima
passar / Muquiado onde nem a luz do poste pode iluminar / Ou pra não ser
oprimido, se sentindo traído / Pela luz do giroflex quando for confundido / A
noite é assim esconde mil tretas por trás (ROSSI, 2017, n.p.).
A partir daí, envolto num sentido geral de rebelião, é possível identificar um ideal de
engajamento que articula arte e política, a favor da superação deste estado de coisas
vigente. Na continuidade de Correndo risco: Entre discos e livros, colocando a vida em risco
/ É por um amor maior a tudo isso eu me dedico [...] Mas eu ainda tô vivo, cheio de
disposão / Pra lutar, pra mudar algo nesse mundo cão. Nessa chave, os manos parecem
conceber a possibilidade de sua integração, no quadro de valores da sociedade em geral, como
condicionada à construção de uma nova ordem, correspondente aos ideais de paz, justiça e
igualdade. Como transparece em Introduzindo ideias:
Entre conformado e revoltado com o sistema um preço / A pagar, ironia
do destino, é assim mesmo, quem sabe? / Vou seguindo com meu modo de
viver, diferente chave / Quem sabe um coletivo, unido, com nosso próprio
hino / Como Kant imaginou, universal, sem mortos nem feridos / Mas digo,
pra que não exista dor, tem que ser sem dinheiro / Sem preconceito, desde o
princípio, tudo repartido ao meio (SILVA, 2015, n.p.).
Em chave aparentemente oposta, [...] quando se quer substituir a condução política
dos litígios pelo tratamento gestionário de problemas -se reaparecer os conflitos sob uma
forma mais radical, como impossibilidade de coexistir, como puro ódio do outro
(RANCIÈRE, 1996, p. 380): problemas desde os tempos de escola, nas brincadeiras de rua
e nos rolês da adolescência. É na afronta que muitos desses jovens encontram a postura que
lhes parece mais efetiva para afirmarem seus pertencimentos e modos de ser, como na
composição Conjuntura periférica, na qual considera que Toda ação tem reação, o efeito é
bumerangue / As pedras que vocês jogaram, voltam como tsunami (SILVA, 2015, n.p.).
Com [...] a mente armada até os dentes, como em Resistência, (SILVA, 2015, n.p.), a
truculência que os rappers endereçam ao sistema parece devolver aquela que o mesmo
sistema lhes dispensava. Versos como os de Capitalismo Selvagem, Trabalhador, estudante,
chamado pelo opressor de ladrão (SILVA, 2015, n.p.), como os de Resistência, liga
244
Giordano Barbin Bertelli
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 238-250, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p238-250
os podres pra coronhada, borrachada / tacar spray na cara, tapa na cara / é a sua cara
(SILVA, 2015, n.p.), ou ainda os de A missão é cantar [...] não precisa esculachar / como
fizeram rias vezes que estou por aí / suave com os meus iro aqui do gueto / meditando e
eles faltam com respeito / o sei se porque sou preto / batem mesmo e não tem jeito (SK
FAMILY, 2017, n.p.), sintetizam a experiência de humilhação social e a violência
dispensadas aos segmentos dos quais provém estes MCs. Cultivam uma atitude, portanto,
certamente destrutiva em face do sistema.
Entretanto, não se trataria de simples adesão à criminalidade. Somos contra essas fita
/ nós não rouba nem trafica / nós mostramos a saída / tu pode ter certeza / que o rap salva
vidas, alertam os versos de Ser o que eu sou (SK FAMILY, 2017, n.p.). Estes jovens se
apropriam do crime como de um repositório de linguagens e atitudes, ambas de combate.
Como em Correndo riscos: Transmite uma mensagem do gueto pro mundo / Rap politizado,
falando de vários assuntos / O estudo é o escudo, o verso descarrega a munição / A arma da
periferia contra todo tipo de opressão (SILVA, 2015, n.p.). Aqui fica evidente o paradoxo
entre afinidade e repulsa que marca a relação do rap com o crime, tal como ela aparece na
trajetória de meus interlocutores. No plano estético das composições, essa tensão resulta na
ressignificação que os MCs operam das armas, transpostas de sua condição de signo de
violência para o papel de signo da luta potica como também fazem os Resistentes MCs,
em sua parceria com o MC Guilherme Silva, na faixa Conjuntura Periférica:
Salve, vagabundo nato! / Filosofia Rap, visão de favelado / Gangsta,
gansgta, a ideia é a mesma / Buscar conhecimento, chutar o sistema / Vai
logo senta o pau, pega o gato pelo rabo / O arsenal tá em punga, vários livro
engatilhado / Pode pá, meninão, explode, igual dinamite / As palavras de
Malcon, com as frases de King / Debate na TV desliga que eu não quero ver
/ Disputa pelo trono, PT, PSDB / É América do Sul, Brasil, carnaval / O
clima é de tensão, desigualdade total / Enquanto o [...] de terno, rouba e não
vai preso / Moleque na cena do loco enquadra a burguesa pelo sustento / É
foda, mas infelizmente é assim / O governo faz do povo, fantoche,
brinquedinho / Quer brincar? Vamos lá, joga as peça na mesa / É mais
polícia, mais cadeia, menos saúde, mais pobreza / Toda ação tem reação, o
efeito é bumerangue / As pedras que vocês jogaram, voltam como tsunami
(SILVA, 2015, n.p.).
É assim que o estigma do vagabundo nato é retomado como uma disposição
desafiadora das identidades hegemônicas. E que a recusa ao sistema se situa nos limites entre
dissenso e violência. A recusa contundente do sistema potico vigente não equivale
necessariamente a ingênuo absenteísmo, parecendo mais à recusa em compor este sistema, e
assinalando à possibilidade de evocação de uma outra comunidade potica possível, cuja
posse os manos supõem compartilhar. O rap, como o crime, equaciona combate na frente
externa à pacificação interna, na medida em que oferece uma perspectiva de vida, uma matriz
de sentido e de pertencimento comum, que se contrapõe e serve de alternativa ao sistema:
Conjuntura periférica, rap de favela / Aperta o play maloca, vai, desliga a tela (SILVA,
2015, n.p.).
Se a periferia aparece nessas vivências como o ponto a partir do qual se olha para a
cidade e se enuncia cidades possíveis, ela não é, contudo, única e simplesmente a
territorialização de um lugar circunscrito e fechado sobre si. Tanto é assim que as práticas
associativas entre os manos constantemente envolvem a participação de elementos de fora
em eventos e projetos. Como certa vez me chamou a atenção o MC Magrelo: [...] eles era de
rios ponto da cidade, bairro mais rico, tinha um padrão de vida diferente... mas tava sempre
245
Conversas sobre hip-hop
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 238-250, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p238-250
junto, fizemos vários projetos com eles... sem se preocupar com a classe dos cara, nunca foi
problema (conversas, 2018).
Essas alianças, muitas vezes impensáveis para os padrões de segregação de cidades de
porte maior, são temas do grupo Fator Acochativo, ele mesmo resultante da união entre
músicos da periferia e dos condomínios:
Licença que Fator Acochativo se apresenta / Diversas frequências mixadas
em canções / Várias cabeças pensantes / Vários corações / Várias histórias
unidas pelo destino / Único espírito, escrevendo juntos um novo capítulo /
Quem curtia um bom rap, se liga na fita / Junto com o fator / Os beats
ganhao vida / [...] Pancada rap sim senhor invade nos tímpanos / Seguindo
o mandamento: o rap é compromisso / Positivo, vibra as cordas e afasta o
negativo / A baquetada dói na face / De quem não segue o ritmo / Sozinhos,
somos nota, juntos somos acorde / União e respeito é que nos faz um fator
forte (FATOR ACOCHATIVO, 2013, n.p.).
O lugar discursivo da periferia certamente não é um gueto. Tampouco resume toda a
composição da cena Hip-Hop. Ele agencia alianças com outros grupos, empenhados no
mesmo propósito. Se muitas vezes sua contundência está ligada à representação do lugar do
preto e do pobre, não se trata, aí, de essencializações, mas de categorias litigiosamente
situadas e relacionais. Para estes MCs, a periferia parece resultar da vivência de uma
relação conflituosa com os estigmas que lhes quer impor o sistema. Conflito que situa e
subjetiva raça e classe, numa perspectiva que coloca a cidade como a arena de uma luta
histórica e atual. São os versos de Raízes Africanas: Permanecemos na resistência por
sermos a maioria / É a real, antigamente quilombos hoje periferia (SILVA, 2015, n.p.) e de A
Fábrica, onde esta luta aparece inserida em uma rede de alianças igualmente histórica e atual,
que compõem não interações sociais como também procedimentos estéticos: Imerso na
magia, das raridades musicais / Mixo meus sentimentos com os dos meus ancestrais / Que
criaram relíquias, e aqui o estão mais / Deixa com is, que a gente cuida e sabe bem o
que faz (ROSSI, 2017, n.p.).
BATALHAS DE MCS: ENFRENTAMENTO E SOLIDARIEDADE
O chamado à luta é uma constante na estética e atividades culturais dos atores em
foco. Embora direcionada ao sistema, inimigo externo à cena Hip-Hop, é sob seu signo e de
correlatos como o duelo, a rinha, a batalha etc., que são significados, curiosamente, grande
parte dos laços de sociabilidade entre seus participantes. Realizada, entre outros locais, em
uma das principais praças do centro da cidade, a Batalha de MCs é exemplar nesse sentido.
Naquele momento, as Batalhas constituíam um dos poucos, senão o único, evento
protagonizado por um agrupamento informal de pessoas, isto é, por um grupo que não
pertença ou esteja ligado ao poder público, ou a associações devidamente formalizadas e
previamente legitimadas frente ao mesmo e à população. Essa autonomia compulsória,
única alternativa face ao diálogo incipiente entre os setores dirigentes e os movimentos
populares, observável na inserção do movimento Hip-Hop na cena pública da cidade,
comparece também na dinâmica que caracteriza a organização e a realização do evento, cuja
única parceria se dava com uma loja de moda Hip-Hop. Assinala o MC Casteda: Surgiu da
gente ver na internet a movimentação das batalhas em outras cidades. Daí a gente reuniu um
grupo e começamos a fazer. No começo era bem precário, a gente com uma caixinha de som.
Depois um lojista colou com a gente e deu um apoio no som (conversas, 2018).
246
Giordano Barbin Bertelli
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 238-250, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p238-250
O processo associativo envolvido na organização e realização da Batalha valia-se da
facilidade de comunicação e divulgação oferecida pelas redes sociais e apoiava-se na
distribuição de atribuições: Se reunir mesmo era bem raro, mas a gente sempre tava trocando
informações pela net, cada um assumia uma responsa e íamos pra cima (conversas, 2018).
Assumir a responsa de fazer o corre pro alvará, descolar o som, agilizar o carreto,
implica uma divisão de providências e tarefas em cuja implementação e coordenação estes
atores pareciam não depender da definição de um núcleo diretivo claramente definido ou da
liderança pessoal de um deles. Cada um parece receber as incumbências que estejam mais
próximas dos recursos que dispõe. MC Casteda, por exemplo, diversas vezes realizou
carretos para apresentação de amigos em festivais e nas batalhas da cidade: trabalhava com
um caminhãozinho b de uma pequena empresa de transporte e entrega. MC Pelicano
emprestava equipamentos de som de uso pessoal em sua atividade de produtor. MC Pantera
fazia a divulgação do evento no programa que produzia e apresentava em uma rádio
comunitária. DJ Dry comparecia com as pick-ups. Um comerciante parceiro doava artigos
para premiação dos vencedores da batalha. E MC Ale ficava com a árdua tarefa de conseguir
o alvará de autorização do evento pelo menos a partir do momento em que as circunstâncias
colocaram a necessidade do documento.
A coesão e solidariedade internas parecem constituir os dois principais fatores de
mobilização de recursos e ações. Fatores que também se incluem entre os responsáveis pela
forma característica em que estes jovens artistas praticam sua aparição no espaço público,
revelando muito do ímpeto combativo notado anteriormente. A princípio, sua ação não
reconhece no poder público municipal um interlocutor necessário para a realização de suas
atividades. Ou pelo menos, não o reconhecem como um parceiro. Mais uma vez é MC
Castañeda quem conta:
Fomos de louco mesmo, sem alva. Logo a polícia colou, pedindo
autorização. Daí corremos ats e conseguimos. Antes do alvará a gente
puxava a eletricidade duma tomada que tinha perto da mpada da marquise,
que o pessoal usava de dia. Depois a gente começou a puxar da caixa de
força que tem no poste próximo da banca de revista que tem lá. Com o
tempo começou a colar mais gente. Mais MCs, DJs, pessoal do break, do
grafite. Quando tava mais organizado a gente sempre trazia outros grupos
também pra se apresentar. Tinha as batalhas e depois a apresentação. Grupos
daqui, do pessoal da antiga. Grupos de fora, da região e ade São Paulo
(conversas, 2018).
A maneira em que procedem ao uso e ocupação de recursos e equipamentos públicos
assinala uma ação que não se movimenta dentro dos ordenamentos hegemônicos do espaço
urbano, mas em clara oposição a ele. Reivindicam uma legitimidade, assim, independente dos
parâmetros gestionários vigentes na cidade-sistema, rebelde aos ordenamentos da polícia.
As batalhas funcionam como um multiplicador de redes e alianças. Nesse sentido,
cabe incluir ainda outros agrupamentos e culturas juvenis que disputam o espaço urbano
com os ditames do sistema e que também colavam nas Batalhas, como skatistas, pichadores e
ciclistas. O primeiro deles encontra-se bastante próximo ao Hip-Hop, na cena observada.
Skatistas e membros do Hip-Hop o dividem outros espaços, como a principal pista de
skate da cidade, distante da área central, como também é comum o trânsito entre os dois
universos culturais. Rapper e skatista, MC Lincoln Rossi coms diversos raps que flagram as
disputas e recriações da cidade análogas às do Hip-Hop da perspectiva de quem a vê com
o Pé na tábua:
247
Conversas sobre hip-hop
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 238-250, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p238-250
O barulho das roda chama atenção da vizinhança / Os vira-lata na bota tenta
pegar, mas não alcança / As remada é forte e precisa, difícil de acompanhar /
Os distraído na rua só vê um vulto passar / De bombeta, sem peita, de berma
e fone no ouvido / Rasgando as ruas da quebra, pra tromba com os amigo /
No semblante o sorriso demonstra não sou de encrenca / Mas ai do motorista
brek que não der preferência / Vai arrumar pra cabeça, nosso direito é igual /
Não vou me intimidar, com sua buzina infernal [...] / Espanto pras tia,
estimulo pras mina, inimigo dos coxinha / E dos atrasados que não entendem
/ Uns jogam bola, outros só marolam, eu ando de skate [...] A cidade não é a
mesma aos olhos dos skatistas / Observando os pico, chego a conclusão, a
rua é a melhor pista / Escadaria na praça, borda de rmore da boutique /
Gap pra tudo que é lado, vai ter best trip / Enquanto não acertar, eu não
vou parar / Persistência essencial que também levo pra vida / Se cair me
levando, sempre de cabeça erguida / Tiro a poeira do corpo e vou pra outra
tentativa / Os amigos manda a vibe positiva e me incentiva / Sem
competição, só por diversão é o que liga (ROSSI, 2017, n.p.).
De cima do skate a cidade é relida como pista e circuito a ser percorrido, uma
experiência corporal em que o deslocamento espacial se processa mediante as aliaas entre
skatistas e o enfrentamento das práticas espaciais hegemônicas. Da perspectiva das rimas e
batidas, a cidade se configura como arena em que o agonismo entre manos engajados em
duelos poéticos, longe de anular, reforça suas alianças. Entretanto, ambos evocam um espaço
heterogêneo, uma cidade coletiva e lúdica contra o espaço homogêneo da circulação, da
cidade privatizada e gestioria. Sendo assim, durante as Batalhas, não só as configurações do
espaço variam segundo a diversificação da composição do público, como também a
diversidade de práticas espaciais explicitam o caráter potencialmente heterogêneo dos usos e
das configurações da cidade e do cenário urbano.
Seguindo um calendário irregular, muitas vezes ditado pela disponibilidade do alvará
de autorização do evento, mas sempre ocorrendo em tardes de domingo, por volta das
dezesseis horas, a realização das Batalhas também apresentavam o mesmo espírito
colaborativo observado na etapa de organização. Os MCs se revezam na função de presidir as
batalhas e dialogar com o público. Eventualmente faziam as vezes de DJ. Os demais artistas
dedicavam-se ao seu elemento e eventualmente registravam o evento com fotos e deos,
alimentavam as redes sociais do evento, parte tão importante quanto sua efetivação em tempo
real.
Por meio da mediação do MC, são as manifestações de entusiasmo e recusa do público
que decidem o resultado das batalhas. São basicamente duas modalidades. A Rinha ou
Batalha de Sangue e a Batalhe de Conhecimento. Em ambas, a destreza em armar rimas em
um discurso improvisado e minimamente coerente consiste no principal trunfo dos oponentes.
Na Batalha de Sangue, o alvo do participante é sempre seu opositor, que deve ser
desacreditado diante do público. Não se trata de sustentar as próprias virtudes, mas de
desqualificar moral, potica ou artisticamente seu competidor. O tom oscila entre a acusação
e o debate. Na Batalha de Conhecimento, o alvo encontra-se fora dos competidores. Trata-se
de demonstrar conhecimento e argumentar convincentemente a respeito de um tema
previamente definido pelo público. Nessa modalidade, o predonio é do debate, embora
parte da estratégia possa consistir em denunciar a inconsistência do discurso do outro.
Racismo, violência, preconceito e drogas o os temas escolhidos com maior
frequência pelo público. Ofensas consideradas homofóbicas, misóginas e racistas, além de
ofensas endereçadas às mães dos competidores são terminantemente proibidas nos duelos.
Sendo assim, o público intervém não com aplausos para ovacionar os competidores como
também com vaias para censurá-los, sempre que julga ter ocorrido alguma infração. A Batalha
enseja, portanto, a prática blica do debate em torno de temas e condutas fortemente
248
Giordano Barbin Bertelli
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 238-250, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p238-250
presentes na experiência da grande maioria, se o de todos, os envolvidos no evento.
Configura-se, assim, uma espécie de arena pública, central na definição dos rumos do evento,
fortemente coletivizada e constitda, justamente, mediante ocupação e ressignificação do
espaço urbano.
Tanto a organização quanto a realização da Batalha implicam uma forma de
associação e de ocupação do espaço em que se presume que a competição entre os agentes
o deve prevalecer ao respeito e à lealdade entre eles abraços, cumprimentos e outros
gestos de admiração e respeito são frequentes no final de cada round. Trata-se de uma
ritualização agonística da humildade categoria mobilizada em diferentes situações e
contextos da sociabilidade popular e das periferias (MARQUES, 2010) e que, neste caso,
inscreve o princípio de que o desejo de autoafirmação face ao outro não deve anular o
pressuposto de que ambos, vencedor ou vencido, permanecem, entretanto, parceiros. Em
outras palavras, embora ostente diversos signos de disputa e rivalidade, a batalha assemelha-
se mais a uma oportunidade de exercitar as habilidades poéticas que a ao desejo de sobressair-
se ao rival. Uma forma de interação, portanto, em que a cooperação predomina sobre a
competição, já que a condição de possibilidade para tal exercício é a presunção da igualdade
entre os parceiros de disputa.
Sendo assim, a lógica de ocupação do espaço público urbano presente na dinâmica de
organização e realização das Batalhas, inscreve um ideário de convívio coletivo ancorado na
presunção recíproca da importância e equivalência dos papeis atribuídos a cada um. Mais que
cenário, a cidade é um móvel para tais relações, que as ações de implementação do evento
coincidem com as providências necessárias à ocupação de seus espaços e, esta última, com o
próprio evento em ato.
Em tensa conexão com a cidade hegemônica, remanejando e ressignificando seus
espaços e sentidos, enuncia-se, assim, uma cidade mais afeita a parâmetros igualitários, cuja
prática coincide com a efetivação da própria cena Hip-Hop. Contudo, a igualdade é o
correlato interno da resistência e da luta praticadas na frente externa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A parceria, a solidariedade, o enfrentamento e a resistência, cada um à sua maneira,
parecem corresponder a diferentes modulações de um mesmo esforço associativo e simlico
de reapossamento do espaço urbano, por parte de um agrupamento social composto por uma
heterogeneidade de sujeitos, que sofrem diferentes graus de violação do direito à cidade.
A pacificação dos territórios e condutas se apresenta como um tema central da
historiografia Hip-Hop sobre a cidade. Nesse sentido, trata-se de um elaboração simbólica
que incide desafiadoramente em uma das justificativas, acionadas por atores governamentais,
para as poticas de militarização do espaço e criminalização das periferias. O Hip-Hop não só
descontrói as narrativas estigmatizantes e criminalizantes sobre seus atores e pertencimentos
territoriais, como tece uma trama dissidente em que o protagonismo deixa de implicar, como
na historiografia oficial, uma relação verticalizada, unicentrada e unidirecional que
sobrepõe o estado (e as polícias) às periferias, opondo a esta lógica discursiva uma agência
composta pelas múltiplas iniciativas de membros das quebradas locais, articulados em
relações horizontais de amizade e parceria de mano pra mano.
As Batalhas agenciam um processo associativo horizontalizado, em que a
coletivização da autoridade decisória se materializa na lógica de complementariedade e
colaboração que opera na divisão das tarefas e papéis que perfazem as etapas de organização e
realização dos eventos. A forma pela qual estes últimos se efetuam e em cena uma
espacialidade que tensiona e ressignifica a praça do consumo e da circulação vigiada,
249
Conversas sobre hip-hop
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 238-250, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p238-250
evocando um espaço de convívio lúdico, tramado por alianças entre atores heterogêneos cujas
práticas fazem valer a presunção da igualdade entre si. O espaço da praça se re-publiciza,
por força de um debate agonístico que, longe de comprometer, é parte constitutiva da coesão
do grupo, na medida em que a presunção dos vícios ou virtudes performados entre opositores
ganha sentido mediante a remissão à base comum de valores e princípios compartilhados
por participantes e plateia.
Contudo, aparentemente os grupos hegemônicos associam às práticas vivenciadas e
conversadas a uma matriz prévia de sentido que opera pela ausência: de ordem”, de
civilidade”, de cultura, daí, portanto, sua brutalidade”, imoralidade e “nocividade” à
ordem social e urbana. Categorias acusatórias que parecem indicar o alto teor de
conflituosidade instalada entre a cidade da circulação mercantil e da vigilância e o caráter
dissensual da cidade coletiva, litigiosa, lúdica e igualitária, inscrita nas práticas da militância,
da produção cultural e da autogestão dos e nos espaços. As práticas associativas
compreendidas alteram não os sentidos da cultura e a da política, mas, com elas,
ressignificam os significados da própria cidade e da vida urbana.
Na cena Hip-Hop aqui abordada, transparece uma sociabilidade nitidamente ancorada
em princípios colaborativos, presentes na distribuição das tarefas e da autoridade que
presidem a dinâmica associativa. Um universo social horizontalizado, que parece inscrever
uma prática do espaço pautada em valores de respeito e igualdade, fortemente contraposta às
obstruções institucionais e aos enunciados acusatórios que pesam sobre sua expressividade
estética e violam seu direito de acesso à cidade, imprescindível à viabilização de suas
atividades arsticas.
REFERÊNCIAS
BERTELLI, G. B. Errâncias racionais: a periferia, o rap e a política. In: BERTELLI, G. B.; FELTRAN, G.
(org.). Vozes à margem: periferias, estética e política. São Carlos: EdUFSCar, 2017a. p. 21-38.
BERTELLI, G. B. Introdução. In: BERTELLI, G. B.; FELTRAN, G. (org.). Vozes à margem: periferias,
estética e política. São Carlos: EdUFSCar, 2017b. p. 13-18.
CÂNDIDO, A. Literatura e sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes do fazer. Petrópolis: Vozes, 2009.
FATOR ACOCHATIVO. Fator acochativo. São Carlos: Correra Records, 2013. 1 CD.
FELTRAN, G. S. Crime e castigo na cidade: os repertórios da justiça e a questão do homicídio nas periferias de
São Paulo. Cadernos CRH, v. 23, n. 58, p. 59-73, 2010.
LEFEBVRE, H. A revolução urbana. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
MARQUES, A. Liderança, proceder e igualdade: uma etnografia das relações políticas no Primeiro
Comando da Capital. Etnográfica, v. 14, n. 2, p. 311-335, 2010.
RANCIÈRE, J. O dissenso. In: NOVAES, A. (org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
p. 367-382.
RANCIÈRE, J. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: EXO Experimental; Editora 34, 2005.
ROSSI, L. Retalhos de uma vida. São Carlos: Correra Records, 2017. 1 CD.
SILVA, G. Filosofia rap o despertar da consciência. São Carlos: Correra Records, 2015. 1 CD.
250
Giordano Barbin Bertelli
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 238-250, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p238-250
SK FAMILY. 3R. São Carlos: Correra Records, 2017. 1 CD.
TELLES, V. S. Cidade: produção de espaços, formas de controle e conflitos. Revista de Ciências Sociais, v. 46,
n. 1, p. 15-41, 2015.
______
Recebido em: 05 nov. 2023.
Aprovado em: 16 nov. 2023.