v. 7, n. 3, p. 251-259, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 251-259, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p251-259
Não sou seu mestre:
processos criativos em pintura na graduação em Artes
I am not your master: creative processes in painting in the undergraduate Arts program
No soy tu maestro: procesos creativos en pintura en la carrera de Artes a nivel universitario
PRISCILLA PESSOA
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL, UFMS, CAMPO GRANDE-MS, BRASIL
RESUMO
O presente ensaio propõe uma análise crítica do ensino de disciplinas de pintura em nível de graduação,
centrando-se no papel do professor-artista na orientação dos processos criativos dos acadêmicos, a fim de evitar
uma abordagem autoritária de mestre. São apresentadas reflexões sobre a dinâmica da relação mestre e aprendiz,
destacando a problemática associada à perpetuação dessa postura por parte do professor-artista. Na sequência, é
exposta uma experncia na condução da disciplina “Oficina de Pintura II”, na qual busquei integrar pesquisa e
ensino, proporcionando uma orientação enriquecedora em termos de possibilidades e discussões para o
desenvolvimento de processos criativos individuais em pintura pelos acadêmicos.
Palavras-chave: Pintura. Ensino Superior. Processos Criativos.
ABSTRACT
This essay proposes a critical analysis of the teaching of painting disciplines at the undergraduate level, focusing
on the role of the artist-teacher in guiding the creative processes of students, aiming to avoid an authoritarian
master approach. Reflections on the dynamics of the master-apprentice relationship are presented, emphasizing
the issues associated with perpetuating this stance by the artist-teacher. Subsequently, an experience in teaching
the course Painting Workshop II is outlined, where I sought to integrate research and teaching, providing
enriching guidance in terms of possibilities and discussions for the development of individual creative processes
in painting by the students.
Keywords: Painting. Higher Education. Creative Processes.
RESUMEN
Este ensayo propone un análisis crítico de la enseñanza de asignaturas de pintura a nivel de grado, centrándose
en el papel del profesor-artista en la orientación de los procesos creativos de los académicos, con el objetivo de
evitar un enfoque autoritario de maestro. Se presentan reflexiones sobre la dinámica de la relación maestro y
aprendiz, destacando la problemática asociada con la perpetuación de esta postura por parte del profesor-artista.
A continuación, se expone una experiencia en la dirección de la asignatura Oficina de Pintura II, donde busqué
integrar la investigación y la enseñanza, brindando una orientación enriquecedora en términos de posibilidades y
discusiones para el desarrollo de procesos creativos individuales en pintura por parte de los académicos.
Palabras clave: Pintura. Educación Superior. Procesos Creativos.
1
Docente nos cursos de Artes Visuais da UFMS, nas áreas de história da arte e pintura, com pesquisa em
processos criativos em pintura. E-mail: priscilla.pessoa@ufms.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8080-
8856.
252
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A FIGURA DO MESTRE
A arte se fez presente praticamente desde que existem seres humanos, em quase todas
as tradições culturais conhecidas e, sendo assim, conceitos e modos de produção artística
foram transmitidos para alguém, que os apreendeu e transmitiu para outrem, consolidando
assim incontáveis processos de ensino aprendizagem. Percorrendo rapidamente as páginas de
um único livro de história geral da arte, como, por exemplo, o de Gombrich (1999),
encontramos várias vezes a descrição de relações do tipo mestre x aprendiz sendo citadas
como forma de ensino de pintura, nas mais diversas épocas e sociedades: o autor nos conta
sobre como as leis rigorosas do estilo de pintura epcia da Antiguidade eram passadas, quase
sem alterações, de geração a geração de artistas; elucida que a pintura chinesa budista era
ensinada através de um método em que os aspirantes pintavam, durante anos, exaustivamente,
montanhas, rios e rochas com base nas imagens produzidas por seus preceptores, e quando
estavam extremamente hábeis nessas cópias, eram liberados para viajar e observar a natureza
diretamente; e, por fim (mas eu poderia tomar emprestados muitos outros exemplos),
Gombrich (1999) relata como se dava o ensino nas oficinas de mestres-pintores da Europa
medieval e moderna.
Essa tradição, por atingir a nós, brasileiros, de maneira mais impositiva dada nossa
herança de séculos de colonização, tamm, no campo cultural interessa, aqui,
especialmente. Naquela época, as oficinas estavam vinculadas às corporações de ofício ou
guildas (conjunto de trabalhadores dedicados ao mesmo ocio numa cidade ou região). Os
membros dessas corporações, fossem elas artísticas ou o, eram divididos em: aprendizes
(em geral jovens que aprendiam o ocio com os mestres, além de serem seus assistentes, em
troca de casa, comida e ensinamentos); jornaleiros (aprendizes que terminavam seus estudos,
mas podiam continuar trabalhando com os mestres em troca de salário); e mestres (os donos
das oficinas que executavam e transmitiam seus ofícios). A palavra mestre, tal qual a usamos
hoje no meio artístico, surge.
A transmissão de saber de mestre-pintor para aprendiz não era abrangente em relação
às variantes possíveis da pintura; advinha como consequência do fazer cotidiano no ateliê,
fruto da observação da fatura de pinturas e do auxílio, não nessa etapa, mas também na
produção de materiais pictóricos. Falamos, assim, de uma relação muito marcada pelo
aprendizado de um repertório de procedimentos criativos e técnicos restritos àqueles que o
mestre desenvolveu ao longo de sua própria carreira artística.
No Brasil, as primeiras produções artísticas de cunho erudito são identificadas com o
Barroco estilo a que artistas nacionais imprimiram características formais e materiais que o
tornaram muito diferente daquele que leva a mesma denominação na Europa. Mas, de acordo
com Barbosa (2015, p. 144), também no Brasil “[...] o ensino da arte barroca tinha lugar nas
oficinas através do fazer sob a orientação do mestre”. Ainda segundo Barbosa (2015), o
sistema de ensino formal em arte foi introduzido no Brasil com a criação da Escola Real de
Ciências, Artes e Ocios futura Escola Nacional de Belas Artes fundada em 1816, com
inspiração nas Ecole des Beaux-Arts francesas.
Nessa instituição, precursora do que seria o ensino superior na área de Artes no Brasil,
a formão em pintura era caracterizada por ter como método a reprodução de modelos
acadêmicos e seus gêneros pictóricos, por ser calcada no rigor técnico e por ser centrada na
figura do professor (em geral também artista), como detentor do conhecimento a ser
transmitido aos alunos. Tal conhecimento era, por sua vez, adquirido através desse mesmo
modelo, ou seja, inserido numa prática educativa retroalimentadora, na qual ecoavam
bastante, agora adotadas entre as regras das academias, algumas ideias arraigadas que são
características da antiga relão entre mestre e aprendiz que, entre outras coisas, não levam
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em conta a individualidade daquele que aprende ao mesmo tempo em que suprematiza a
daquele que ensina.
Essa espécie de tradição dentro do ensino de pintura, em que pesem todos os séculos
de rupturas artísticas que separam os mestres das oficinas medievais dos atuais professores-
artistas que ministram a disciplina em instituições de ensino superior, além de todas as
possibilidades pedagógicas desenvolvidas nesse intervalo, ainda é, muitas vezes,
reconhecível. Assim, quando aponto a problemática que reside na tendência do professor-
artista de posicionar-se como mestre, ao ensinar pintura numa graduação, é especificamente
ao perigo da restrição a um repertório pessoal de processos criativos que me refiro.
Também sou professora-artista e na minha produção artística, transito pela pintura,
desenho e instalação, numa operação poética ligada ao íntimo e ao cotidiano, participando
regularmente de mostras individuais e coletivas
2
.
E, ainda que tenha apresentado algumas breves considerações históricas sobre a
relação entre mestre e aprendiz, me refiro à questão da restrição a um repertório pessoal na
orientação de processos criativos em pintura na graduação, principalmente, por razões
empíricas: em diversas ocasiões notei, tanto numa autocrítica ao meu próprio exercício de
docência dos primeiros anos de magistério, como também ao observar o trabalho de outros
professores-artistas que ensinam pintura e outras linguagens no ensino superior, uma
inclinação forte ao comportamento de mestre ao passo que muitos estudantes assumem, de
bom grado, o de aprendiz.
E não se trata, no mais das vezes, de má intenção nem de relapsidade: as ementas são
seguidas, as teorias revisadas, a história da pintura serve como base, obras referenciais são
apresentadas... mas na hora do vamos ver”, no momento em que os acadêmicos precisam
começar a desenvolver seus processos criativos (conceituais e práticos) em pintura, é quase
natural ao professor-artista usar como base de orientação seu próprio universo criativo,
transmitindo os procedimentos e técnicas com os quais resolve os problemas que a fatura de
uma pintura vai apresentando, até sua finalização.
São posições bastante confortáveis, uma vez que são eficientes: o acadêmico vai
aprender um caminho para sua pintura, apresentará obras com alguns toques pessoais seus e
tudo tecorrido tranquilamente no trabalho do professor, ficando ambos com a sensação de
terem cumprido seus objetivos. Mas, em geral, o conforto esconde erros sérios em qualquer
magistério e, no contexto de que falo aqui, o é diferente; cabem bem, neste momento, as
lições que o professor e semiólogo Roland Barthes nos legou em sua Aula, em que defende
uma prática docente na qual o professor abre mão do monopólio sobre um tema ou sobre seus
alunos, pois, “[...] o que pode ser opressivo num ensino o é finalmente o saber ou a cultura
que ele veicula, são as formas discursivas através das quais ele é proposto (BARTHES,
2007, p. 41).
Nesse e em outros textos, o autor sustenta que a aula deve ser um espaço fértil para o
bem-vindo surgimento de diferenças, um “viver-junto”, no interior do qual [...] a coabitação
o exclui a liberdade individual” (BARTHES, 2003, p. 329). Em um contexto de ensino
como o que propõe, Barthes (2004) defende que o professor não pode, de modo algum, se
colocar como depositário de um conhecimento supremo e exclusivo, [...] mas apenas um
regente, um operador de sessão, um regulador: aquele que regras, protocolos, não leis” (p.
412), no sentido mecanicista que esse termo muitas vezes adquire.
Assim, escolhendo a via apontada por Barthes, surgem algumas questões frente ao
professor-artista de pintura: como produzir um discurso sobre o pensar e o fazer pictórico
sem, no entanto, im-lo, tornando a sala de aula um espaço tanto de conhecimento quanto de
2
Mais informações sobre essa carreira podem ser obtidas em meu site de artista:
https://www.priscillapessoa.com.
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criação e produção de diferenças, desviando do caminho quase inconsciente de
reprodução do papel de mestre no momento da orientação de processos criativos dos
acadêmicos? Como lidar, para além da amplitude de possibilidades da pintura, também com
as especificidades de cada acadêmico, muitas vezes na posição de artistas em formação?
Como abordar a prática pictórica, considerando-a sempre sob a perspectiva de uma longa
tradição, mas principalmente, inserida no contexto da arte contemporânea, com toda a
complexidade que esse agrega? E, em um sentido mais amplo, reconhecendo sua condição de
linguagem da arte, cujos caminhos são naturalmente abertos à imprevisibilidade.
PROCESSOS CRIATIVOS NA PINTURA CONTEMPORÂNEA DA PESQUISA À SALA DE AULA
3
Dentre as várias estratégias possíveis e que efetivamente adotei com o intuito de
considerar e, na medida do possível, responder às questões levantadas no item anterior, dentro
das disciplinas Pintura I”, Pintura II”, Oficina de Pintura I e “Oficina de Pintura II (as
quais ministro, divididas em várias turmas, nos cursos de Artes Visuais da UFMS), tenho
trabalhado com investigações advindas do projeto de pesquisa Processos Criativos na Pintura
Contemporânea Teoria e Prática
4
, tanto na formulação dos planos de ensino, como também
no andamento da disciplinas.
Salles (2002, p. 185) define o processo criativo em arte como um trabalho sensível e
intelectual de construção de objetos artísticos através de um conjunto de reflexões e ações
contínuas, que partem de um prosito ao mesmo tempo em que navegam na incerteza e
indeterminação, convivendo com a intervenção do acaso. Ao adotar essa definição, assumo
que se trata de um tipo de processo repleto de possibilidades e que passa muito longe de poder
ser, simplesmente, explicado a partir de uma única vivência artística, a do professor.
Complementarmente, numa perspectiva sociocultural, destaco também o entendimento
de Ostrower (1993, p. 7), que afirma que:
A natureza criativa do homem se elabora no contexto cultural. Todo
indivíduo se desenvolve em uma realidade social, em cujas necessidades e
valorações culturais se moldam os próprios valores de vida. No indivíduo
confrontam-se, por assim dizer, dois polos de uma mesma relação: a sua
criatividade que representa as potencialidades de um ser único, e sua criação
que se a realização dessas potencialidades dentro do quadro de
determinada cultura.
Partindo desse pensamento, quando o projeto de pesquisa foi elaborado, já trazia em
seu cerne a intenção de contribuir com o caldo de referências que cada estudante traz de seus
contextos sociais e culturais, adicionando a esse repertório contatos, discussões e reflexões
sobre o processo criativo de trinta pintores contemporâneos brasileiros, expandindo suas
noções sobre como pode dar-se o percurso que leva a uma produção, para além das
experiências pessoais (dos alunos e da professora), e incluindo também as experiências de
outros artistas, que se mostraram as mais diversas possíveis, e muito diferentes das soluções
que encontrei e elegi como artista.
3
Alguns trechos deste item foram elaborados a partir do artigo Processos criativos na pintura contemporânea:
da pesquisa à sala de aula (PESSOA; GHIZZI, 2020).
4
A pesquisa, desenvolvida entre 2015 e 2019 no âmbito dos cursos de Artes Visuais da UFMS, ensejou também
um aprofundamento, na forma da tese de doutorado A fotografia como referência em processos criativos da
pintura brasileira no século XXI: possibilidades e convergências (PESSOA, 2023).
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O objetivo foi fazer um levantamento das amplas possibilidades e desafios da pintura
contemporânea, enfocando principalmente o processo criativo de pintores brasileiros em
evidência no circuito de arte nacional. O estudo do processo criativo feito a partir dos
registros gerados por cada artista sobre a produção de sua obra está embasado na chamada
Crítica Getica
5
, abordagem utilizada na pesquisa; de origem francesa, o termo refere-se à
linha investigativa que pretende indagar a obra de arte a partir de sua nese, tomando como
base, para isso, seus documentos de processo. Segundo Salles (2004), documentos do
processo são todo tipo de vestígio (registros visuais, textos, entrevistas, etc.) deixado pelo
artista durante e após o processo de criação de uma obra ou de um conjunto delas; na relação
entre os registros e a obra entregue ao público, encontramos algo que permite reconstituir
fragmentos do pensamento artístico em processo.
Os artistas que tiveram seus processos investigados durante a pesquisa (muitas vezes
com a colaboração dos mesmos) foram selecionados a partir de um recorte obtido com o
levantamento daqueles que trabalham com a linguagem da pintura e têm participação
recorrente, nas duas primeiras décadas do século XXI, em importantes eventos do circuito de
arte contemporânea brasileiro. Esses eventos incluem salões de arte contemporânea de
diversas regiões (de Anápolis-GO, do Pará, de Ribeirão Preto-SP, do Paraná e do Ceará),
prêmios (PIPA, Marcantônio Vilaça, Itaú Cultural) e exposições individuais em museus de
arte contemporânea em todo o país. Tomando como base esse amplo e constante
levantamento, chegou-se a mais de uma centena de nomes, a partir dos quais foram escolhidos
os processos criativos que seriam objeto da pesquisa, tendo como critério principal nessa
escolha a maior diversidade possível de caminhos da criação em pintura.
Assim, entre 2015 e 2019 a pesquisa coletou dados sobre o processo criativo desses
artistas, buscando todo o material que desse conta das etapas, nuances e mudanças nos
percursos que geraram suas pinturas recentes. Foi coletado um denso material (esboços,
referências fotográficas e arquivos diversos, além de entrevistas e depoimentos concedidos
pelos artistas tanto para mídias públicas como também para a pesquisa, em particular),
dividido em trinta dossiês genéticos que, em seu estado bruto, foram discutidos em encontros
de um grupo de estudo vinculado à pesquisa e passaram a servir de base para a produção de
textos, que se debruçavam sobre os processos dos referidos artistas, os quais foram
publicados, na forma de artigos, em livros, revistas científicas e anais de eventos.
Mas, para além da produção científica, a aplicabilidade pedagógica da pesquisa
sempre foi, sem dúvida, o viés mais importante de sua realização, tendo como principal
espaço de vinculação as disciplinas de pintura que lecionei no mesmo período (2015 a 2019),
desenvolvendo, assim, um intenso diálogo entre a pesquisa e o ensino, prática fortemente
incentivada pela UFMS. Tomo como exemplo desse diálogo e de como ele busca minar a
tendência ao comportamento de mestre apresentando, brevemente, a abordagem da pesquisa
na Oficina de Pintura II no ano de 2017.
Nesse ano, a disciplina tinha a seguinte ementa, determinada na estrutura curricular do
Projeto Pedagógico do curso de Artes Visuais/Bacharelado da UFMS (2014): “Pesquisas
práticas concernentes aos materiais, técnicas e suportes usados em pintura, buscando soluções
plásticas e considerando a linguagem pictórica como manifestação contemporânea na
elaboração de uma poética individual” (p. 16). Trata-se de uma disciplina de aprofundamento,
uma vez que é antecedida e tem como pré-requisitos o cumprimento de Pintura I, Pintura
II e Oficina de Pintura I. Está entre as disciplinas optativas eletivas oferecidas tanto para a
licenciatura como para o bacharelado, ou seja, o acadêmico tem a opção de escolher ou o
cursar, para aprofundar-se na linguagem.
5
Inicialmente ligado à literatura, este termo é hoje aplicado para discutir o processo criativo em outras
manifestações artísticas.
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O plano de ensino que desenvolvi para a disciplina considerou fortemente a
singularidade da produção pictórica de cada acadêmico, o em relação ao conjunto de
obras resultantes, mas entendendo que cada caminhar que leva à criação deve ser, também,
uma sequência de procedimentos singulares. Como afirma Salles (2002, p. 191):
A criação mostra-se como uma metamorfose contínua. É um percurso feito
de formas em seu caráter provisório e precário porque hipotético. O percurso
criador é um contínuo processo de transformação buscando a formatação da
matéria de uma determinada maneira e com um determinado significado.
Processo este que acontece no âmbito de um projeto estético e ético e cujo
produto é uma realidade nova.
Oportunamente, a partir dessa colocação de Salles, retorno a um dos meus
questionamentos: como lidar, para além da amplitude de possibilidades que a pintura oferece,
também com as especificidades de cada acadêmico? Pensando nisso, foram definidos no
plano de ensino os objetivos e o programa da disciplina: Objetivos 1. Adquirir um conjunto
de conhecimentos sobre a pintura na arte contemporânea; 2. Pesquisar materiais, suportes e
outros recursos utilizáveis em pintura; 3. Conhecer diversos processos criativos de artistas
contemporâneos que trabalham com pintura; 4. Desenvolver projetos individuais em pintura
envolvendo pesquisa, proposta poética e execução, com ênfase nas tendências
contemporâneas da linguagem. Programa 1. Aulas expositivas e discussões em grupo sobre
referências em pintura contemporânea e processos criativos; 2. Experimentações coletivas
com materiais e suportes não tradicionais em pintura; 3. Concepção orientada de projeto
vivo para série de pinturas; 4. Realização orientada de pinturas; 5. Construção orientada de
texto de apresentação.
Especialmente por causa do terceiro objetivo e do primeiro item do programa,
estabeleceu-se a relação pesquisa/ensino: a reflexão proposta ao acadêmico (em torno da
produção artística que investiga a pintura na arte contemporânea) tem sua ênfase muito mais
nos processos criativos dos artistas do que na análise das obras resultantes. Parte-se da
premissa que, dada justamente a amplitude de possibilidades de caminhares abertos para a
criação em pintura, é impossível ensinar um modelo de processo criativo, mas pode ser muito
construtivo apresentar e discutir variados processos de artistas das mais diversas vertentes
conceituais e formais, enriquecendo o repertório do acadêmico sobre procedimentos e
estratégias e, de quebra, evitando que o processo criativo do professor-artista seja a
principal referência nessa jornada.
Ressalta-se, ainda, que a aplicação do programa não é sequencial e sim intercalada, de
maneira que a discussão sobre processos criativos permeou o decorrer de todo o semestre;
dessa forma, ao mesmo tempo em que os acadêmicos experimentavam materiais e técnicas e
elaboravam seus projetos de pintura, estudávamos e discutíamos, em conjunto, aspectos dos
processos criativos de artistas contemporâneos brasileiros investigados na pesquisa, que
pudessem enriquecer as próprias concepções dos acadêmicos sobre como esse processo
criativo da pintura se desenvolve neles mesmos.
Dialogamos coletivamente, concentrando-nos, por exemplo, na maneira como Ana
Elisa Egreja (1983) faz uso de imagens encontradas na internet como referência para sua
produção; no arquivamento de materiais de provisão que porventura possam entrar nas
pinturas de Eduardo Berliner (1978); no papel fundamental das pesquisas teóricas sobre
história, religião e potica na conceituação das séries de Evandro Prado (1985); na
recuperação de memórias e afetividades na concepção das imagens de Fábio Barolli (1981);
na importância da produção de fotografias autorais como referência para Fábio Magalhães
(1982); nos caminhos entre observação e abstração percorridos por Gabriela Machado (1960);
nas telas já contendo elementos pictóricos e que são o ponto de partida para a pintura de Lucia
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Laguna (1941); e na repercussão de condições pessoais na obra de forte cunho social e
político de Sidney Amaral (1973-2017) entre tantas outras investigações em que olhamos
para os caminhos de criação de outros artistas de modo a refletir sobre possibilidades para os
nossos.
Ainda, houve um momento na disciplina em que cada acadêmico fez sua própria
pesquisa genética (um levantamento muito rápido) sobre os processos criativos de um artista
escolhido por ele, livremente, dentro de sua própria bagagem referencial; esse material foi
compartilhado e discutido com toda a turma, de modo a enriquecer ainda mais o repertório
criativo de todos nós.
Além dessas discussões coletivas, nas orientações individuais, procurei sempre
conhecer a fundo as percepções de mundo, sentimentos e ideias, bem como referências
pessoais de cada acadêmico, valorizando e incentivando ao máximo o reconhecimento e a
manutenção desse conteúdo genuíno, bem como a reflexão sobre suas possíveis influências no
processo criativo e na pintura uma arte sempre imbricada com a vida e a realidade de cada
um. Nesse sentido, quando considerava com cada estudante possibilidades individuais de
percursos criativos baseados na pesquisa Processos Criativos na Pintura Contemporânea
Teoria e Prática, tomava como ponto de partida o que já se insinuava na produção daquela
pessoa, buscando conjuntamente soluções para o pensar e fazer pictórico em curso, e não
um manual pronto, sobre como proceder na criação em pintura.
E, retornando a outra das queses levantadas no item anterior como produzir um
discurso sobre o pensar e o fazer pictórico sem, no entanto, impô-lo, tornando a sala de aula
um espaço tanto de conhecimento quanto de criação e produção de diferenças, desviando do
caminho de reprodução do papel de mestre no momento da orientação de processos criativos
dos acamicos? sempre busquei evitar ao máximo tomar minha produção de artista como
exemplo durante as aulas, deixando falar (o mais alto possível) apenas as vozes dos
estudantes e das referências advindas das nossas pesquisas (já então coletivizadas). São vozes
extremamente dissonantes, variadas, às vezes estridentes, às vezes sussurros, e coube a cada
um, naquela sala de aula, selecionar, capturar e processar essas vivências, de modo a compor
seus próprios processos criativos em pintura.
MUITOS CAMINHOS, NENHUM MESTRE
A ideia de aprender uma arte através do contato imersivo com alguém que é
considerado um mestre nela é algo enraizado em nosso imaginário. De Daniel San e sua
relação com o Senhor Miyagi
6
, até a imagem do jovem compenetrado observando e
reproduzindo as pinceladas de um velho pintor, a premissa é a mesma: adquirir
conhecimentos com alguém que considera-se faz algo com maestria, pode nos levar a
atingir o mesmo patamar.
Quando alguém ensina ao filho seu jeito de fazer bolo de chocolate que a pessoa faz
dessa forma porque algum parente também a ensinou assim estamos falando de uma
tradição de ensino inofensiva, mas que pode tornar-se tão arraigada, que aqueles que a
aprenderam nunca nem pensem, ao longo de gerações, em testar outra receita. Assume-se que
bolo de chocolate se faz assim e pronto. Sem problemas.
6
Personagens principais do filme Karatê Kid A hora da verdade (KARATÊ KID, 1984), que,
resumidamente, narra a história de um jovem que convence um experiente mestre a lhe ensinar karatê
para se defender.
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Mas, quando passamos da cozinha de casa a uma sala de aula de pintura numa
graduação em Artes Visuais, muito mais que se considerar e refletir sobre como e o que
ensinar, e o professor, ainda que possa ter encontrado, em sua vincia de artista, meios para
resolver a própria prática pictórica, precisa exercer autorregulação para não sucumbir à
tentadora posição de mestre, ao invés de encarar o desafio de assumir uma abordagem sobre
processos criativos que permita guiar cada estudante, individualmente, na busca por suas
próprias soluções, em meio ao gigante leque de assuntos, poéticas, materiais e técnicas que a
pintura contemporânea abre alguns dos quais, muitas vezes, nem o professor-artista domina.
Dada a amplitude de possibilidades de caminhares aberta para a criação em pintura, é
limitador demais ensinar um modelo de processo criativo (o que nos remeteria à figura do
mestre), mas pode ser muito construtivo apresentar e discutir variados percursos de artistas,
enriquecendo o repertório do acadêmico e da professora sobre procedimentos e estratégias. O
intuito desse encaminhamento não foi propor uma troca, de um para vários possíveis mestres,
mas mostrar que cada processo criativo é único, que eles são tantos quantos são os artistas e
que, se é possível falar de mestre, então ele está dentro de nós mesmos. Assim, escolhi
permear toda as disciplinas que ministro com a ênfase no processo criativo dos alunos
processos que, se pretende, sejam intensos, apaixonados, dinâmicos, e, ao mesmo tempo,
predominantemente se não absolutamente individualizados. um trabalho danado, que
ultrapassa em muito o horário de aulas. Aprende-se outro bocado também. E novamente,
trago à baila Barthes e sua Aula:
uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra,
em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez
agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar
o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação
dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa experiência
tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui sem
complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: Sapientia: nenhum
poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor
possível (BARTHES, 2007, p. 46).
Não me recordava especificamente desse trecho da Aula quando pensei em tomar a
problemática do professor/artista/mestre como assunto deste ensaio. Mas, ao reler o texto
durante os levantamentos bibliográficos e deparar-me com esse pensamento específico, fiquei
contente ao enxergar-me situada em uma divisa entre a segunda e a terceira idade: ainda com
muito a caminhar no ensino da pintura, mas já longe de ensinar apenas o que já experienciei
em meu percurso como artista. Não, caro aluno, eu não sou seu mestre; você merece bem
mais do que isso.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, A. M. Ensino da arte e do design no Brasil: unidos antes do modernismo. Revista Digital do LAV,
v. 8, n. 2, p. 143-159, 2015.
BARTHES, R. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
BARTHES, R. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BARTHES, R. Aula. São Paulo: Cultrix, 2007.
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Priscilla Pessoa
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 251-259, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p251-259
KARATÊ KID - a hora da verdade. Direção: John Guilbert Avildsen. Intérpretes: Ralph Macchio, Pat Morita,
Elisabeth Shue et al. Roteiro: Robert Mark Kamen. Estados Unidos: Columbia Pictures; Sony Pictures, 1984. 1
filme (2h6min.)
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Recebido em: 13 nov. 2023.
Aprovado em: 30 nov. 2023.