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Priscilla Pessoa
Motricidades: Rev. SPQMH, v. 7, n. 3, p. 251-259, set.-dez. 2023 | ISSN 2594-6463 |
DOI: http://dx.doi.org/10.29181/2594-6463-2023-v7-n3-p251-259
em conta a individualidade daquele que aprende ao mesmo tempo em que suprematiza a
daquele que ensina.
Essa espécie de tradição dentro do ensino de pintura, em que pesem todos os séculos
de rupturas artísticas que separam os mestres das oficinas medievais dos atuais professores-
artistas que ministram a disciplina em instituições de ensino superior, além de todas as
possibilidades pedagógicas desenvolvidas nesse intervalo, ainda é, muitas vezes,
reconhecível. Assim, quando aponto a problemática que reside na tendência do professor-
artista de posicionar-se como mestre, ao ensinar pintura numa graduação, é especificamente
ao perigo da restrição a um repertório pessoal de processos criativos que me refiro.
Também sou professora-artista e na minha produção artística, transito pela pintura,
desenho e instalação, numa operação poética ligada ao íntimo e ao cotidiano, participando
regularmente de mostras individuais e coletivas
.
E, ainda que tenha apresentado algumas breves considerações históricas sobre a
relação entre mestre e aprendiz, me refiro à questão da restrição a um repertório pessoal na
orientação de processos criativos em pintura na graduação, principalmente, por razões
empíricas: em diversas ocasiões notei, tanto numa autocrítica ao meu próprio exercício de
docência dos primeiros anos de magistério, como também ao observar o trabalho de outros
professores-artistas que ensinam pintura e outras linguagens no ensino superior, uma
inclinação forte ao comportamento de mestre – ao passo que muitos estudantes assumem, de
bom grado, o de aprendiz.
E não se trata, no mais das vezes, de má intenção nem de relapsidade: as ementas são
seguidas, as teorias revisadas, a história da pintura serve como base, obras referenciais são
apresentadas... mas na hora do “vamos ver”, no momento em que os acadêmicos precisam
começar a desenvolver seus processos criativos (conceituais e práticos) em pintura, é quase
natural ao professor-artista usar como base de orientação seu próprio universo criativo,
transmitindo os procedimentos e técnicas com os quais resolve os problemas que a fatura de
uma pintura vai apresentando, até sua finalização.
São posições bastante confortáveis, uma vez que são eficientes: o acadêmico vai
aprender um caminho para sua pintura, apresentará obras com alguns toques pessoais seus e
tudo terá corrido tranquilamente no trabalho do professor, ficando ambos com a sensação de
terem cumprido seus objetivos. Mas, em geral, o conforto esconde erros sérios em qualquer
magistério e, no contexto de que falo aqui, não é diferente; cabem bem, neste momento, as
lições que o professor e semiólogo Roland Barthes nos legou em sua Aula, em que defende
uma prática docente na qual o professor abre mão do monopólio sobre um tema ou sobre seus
alunos, pois, “[...] o que pode ser opressivo num ensino não é finalmente o saber ou a cultura
que ele veicula, são as formas discursivas através das quais ele é proposto” (BARTHES,
2007, p. 41).
Nesse e em outros textos, o autor sustenta que a aula deve ser um espaço fértil para o
bem-vindo surgimento de diferenças, um “viver-junto”, no interior do qual “[...] a coabitação
não exclui a liberdade individual” (BARTHES, 2003, p. 329). Em um contexto de ensino
como o que propõe, Barthes (2004) defende que o professor não pode, de modo algum, se
colocar como depositário de um conhecimento supremo e exclusivo, “[...] mas apenas um
regente, um operador de sessão, um regulador: aquele que dá regras, protocolos, não leis” (p.
412), no sentido mecanicista que esse termo muitas vezes adquire.
Assim, escolhendo a via apontada por Barthes, surgem algumas questões frente ao
professor-artista de pintura: como produzir um discurso sobre o pensar e o fazer pictórico
sem, no entanto, impô-lo, tornando a sala de aula um espaço tanto de conhecimento quanto de
Mais informações sobre essa carreira podem ser obtidas em meu site de artista:
https://www.priscillapessoa.com.